5 da manhã desta quinta-feira, 12 de outubro. Sento, à frente do computador, para escrever a coluna da semana, e me ocorre lembrar que há exatos cem anos nasceu Fernando Sabino. Sei que muitos haverão de torcer o nariz a muita coisa que direi aqui, a começar pela afirmação de que se trata do maior cronista brasileiro – maior, no gênero, que Rubem Braga e Machado de Assis – e só seguido de perto, guardadas as diferenças de estilo, por Nelson Rodrigues.*
É claro que tomo por medida uma espécie em que Sabino foi um verdadeiro mestre: a forma narrativa curta que se situa num espaço rigorosamente literário, pautado pela pegada ficcional, e no qual os outros autores aqui mencionados transitaram com menor ênfase. Foram mais autores de texto para jornal, muito embora grandes, mesmo quando adoçaram suas crônicas com a sensibilidade estética e a originalidade estilística que os tornaram inconfundíveis.
Fernando Sabino foi exemplar num tipo de crônica que sobressai pela rapidez, exatidão no emprego da palavra e um componente lúdico que absorve o leitor por completo, razão por que é quase imperceptível a linha que separa sua crônica do conto propriamente dito.
Se são mesmo delicadas as distinções entre uma forma e outra, o que enseja que as antologias não raramente confundam ‘crônica’ e ‘conto’, não significa dizer que inexistam, mesmo aos olhos de leitores não especializados. Quer dizer: a crônica, geralmente curta, destinada a pequenos espaços de jornais e revistas, além da brevidade que resulta disso, é o mais das vezes narrada em primeira pessoa, do que sobressai a visada subjetiva, o olhar do eu sobre o fato explorado no texto como assunto. É, portanto, o ponto de vista do autor que interessa ao leitor, o que comumente empresta ao texto algum perfume de poesia, aspecto característico da crônica em que Vinicius de Moraes – para não citar o próprio Rubem Braga – é notável.
Para não falar de outras marcas dominantes na crônica: linguagem direta, espontânea, jornalística, ainda quando o escritor dispensa ao texto um estilo metafórico que beira o que se define como rigorosamente literário. A tudo isso, importante ressaltar, soma-se uma invariável atenção para o fato efêmero, o ‘desimportante’ fugaz que salta à sensibilidade do cronista como algo digno do registro textual.
Mas em Fernando Sabino esses componentes adquirem uma fisionomia especial, pautando-se pelo que Italo Calvino, o escritor italiano nascido em Cuba, define como mais nobre marca na boa literatura: um senso de medida rigoroso na construção do texto.
Aqui reside, pois, o que diferencia Fernando Sabino dos demais: seus textos, preservando elementos característicos da crônica ‘clássica’, inclinam-se para o que tradicionalmente chama-se de ‘conto’, sem, no entanto, perder a sua essência enquanto gênero narrativo. Explico-me: as crônicas de Fernando Sabino, ao lado de voltarem-se para o fato transitório, passageiro, inusitado etc., dão a esses fatos uma pitada de luz que os faz romper com a mera ‘efemeridade’ para ganhar o status de ‘transcendentes’.
Aqui está a grande virtude desse cronista de personalidade autoral ímpar, pois que soube como poucos dar a uma forma narrativa menos pretensiosa, mais fadada ao esquecimento, porque relato de ocorrências do dia a dia, do inusitado, um toque de ‘permanência’ que é próprio do conto, sem perder a leveza da narrativa ligeira, leve, solta, própria da crônica enquanto literatura. Conclua-se: se é típico da crônica ser um gênero híbrido, pontuado pelo estilo entre oral e literário, em Fernando Sabino essa marca adquire uma dimensão estética de tal modo elevada, que faz dele um caso à parte – e de sua obra, o que existiu de mais marcante em meio aos cronistas brasileiros.
Mas, como escritor, Sabino foi além do texto curto, no qual ombreou-se, como disse, a tanta gente boa e igualmente importante (Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Clarice Lispector, Luis Fernando Verissimo, Nelson Rodrigues, entre outros), com destaque para o emblemático “O Encontro Marcado”, nosso maior romance de formação, tão influente sobre os de minha geração quanto “A Idade da Razão”, de Jean Paul Sartre, ou “Wilhem Meister”, de Goethe. A esta altura, que me permitam mais uma subjetivação: Eduardo Mariano, o protagonista do romance de Fernando Sabino, alterego do autor, foi para nós o Julien Sorel (Stendhal), o Rastignac (Balzac), verdadeiro símbolo de uma educação cultural marcada pela ‘perfectibilidade’ de nossa moral irrequieta e carregada de sonhos.
Na fase derradeira de sua vida como grande escritor, Sabino terá cometido o deslize de emprestar seu enorme talento à produção de um livro comercial e de qualidade esteticamente questionável, “Zélia, uma paixão” (1991), o que lhe custou um tipo de cancelamento desnecessário e perverso: o amigo e também escritor Millôr Fernandes, para ficar num exemplo, publicou no Jornal do Brasil uma charge em que Fernando Sabino aparece carregando uma mala estufada de dinheiro.
Escorraçado das rodas e dos acontecimentos literários, evitado por ex-amigos, Fernando Sabino desceria ao inferno do que hoje se poderia chamar de redes sociais, amargando o peso dos rancores e das incompreensões, indiferentes, todas, ao fato de se tratar de um escritor em cuja obra pulsa um senso de humanidade extraordinário. Nesse sentido, ocorre-me lembrar uma de suas crônicas irretocáveis, “A Última Crônica”, obra-prima sobre a desigualdade social entre as famílias brasileiras.
No centenário de Fernando Sabino, assim, os amantes da boa literatura temos a oportunidade de ressignificar juízos, nomeadamente os não estéticos, e marcar um reencontro com a obra de um grande escritor brasileiro.
*Incomparável a qualquer outro escritor brasileiro, Machado de Assis dedicou-se a escrever crônicas para jornal: textos filosóficos, políticos, sobre o cotidiano e de crítica literária, que não têm qualquer relação com o tipo de crônica a que me refiro nesta coluna. Quanto a Nelson Rodrigues, mais adequado seria considerá-lo “ensaísta”, na linha do que foi examinado por Luis Augusto Fischer no seu notável “Inteligência com dor”, em que afirma que Nelson Rodrigues foi o Montaigne do Brasil.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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