Chico Buarque, o Novo Camões

25/05/2019

Com méritos de um Nobel, Chico Buarque de Hollanda é o novo vencedor do Camões, o mais prestigiado prêmio de literatura em língua portuguesa. Segundo consta, levou-se em conta, sobremaneira, a obra magnífica do compositor (de texto e de melodia), embora estejamos diante de um artista cuja variedade de aptidões é algo espantoso. Isto porque falar da arte de Chico Buarque pressupõe falar de um novelista, um romancista, um dramaturgo, de um intérprete de qualidade e, mais que tudo isso, de um poeta extraordinário.

A nota oficial do júri do Camões destaca a “transversalidade” da obra do artista como forma de dar destaque ao cruzamento de linguagens que perpassa sua vasta produção, o que mais ainda redimensiona o caráter universalista e a versatilidade de um gênio da palavra. Versatilidade, diga-se ainda, que se percebe não apenas no plano de expressão, mas também no plano de conteúdo, pois Chico Buarque, quer na música, quer no teatro, quer no romance, mostra-se atento aos desafios do seu tempo, entenda-se por isso saber como poucos explorar as contradições da sociedade, do homem e da mulher. Desta, muito antes de a questão feminina entrar para a agenda política, foi sempre um aliado, desvendando-lhe a alma e os segredos mais íntimos da feminilidade. Sua obra transita com o mesmo apuro de Noel Rosa e Pixinguinha a John Gay a Bertold Brecht. Desses últimos, por exemplo, trouxe inspiração para realizar uma pérola do teatro moderno, Ópera do Malandro, em 1978.

Com a humildade que dá a ver a solidez do seu caráter, em tudo irrepreensível, Chico Buarque foi informado da premiação em Paris, onde se encontra para festejar o aniversário de 74 anos e dedicar o tempo a escrever seu novo romance: – “Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar”, foram suas palavras ao ser informado do prêmio.

Os desafetos, curvados à força do ódio em face das posições políticas de Chico Buarque, apressaram-se em desqualificar a honraria, como se o agraciado não fosse um dos maiores talentos brasileiros de todos os tempos, e do mundo, muito maior, por exemplo, como escritor, que o Nobel Bob Dylan, cuja obra de ficção, experimental, circunscreve-se a Tarântula, além, claro, dos livros em que estão reunidas as letras de suas belas canções.

No caso de Chico Buarque, há que se falar do teatro – de elevadíssimo nível estético! – e da literatura propriamente dita, a exemplo de peças como Gota d’ÁguaRoda Viva e Ópera do Malandro, e de romances como Estorvo, Budapeste e Leite Derramado. Nestes, a descrição desconcertante, com metáforas originais e um tratamento de linguagem a revelar o artesão exigente por trás de uma narrativa de enorme apuro técnico.

Mas é o poeta que desde os anos 60 vem encantando o Brasil e o mundo. E quando falo “poeta”, faço-o como forma de ressaltar o que, nos meios acadêmicos, já parece ser um consenso: as letras de música de Chico Buarque, em termos de estruturação poética e rigor elaborativo, colocam-se anos-luz à frente do que, com raríssimas exceções, se produziu na MPB.

Nesse sentido, diga-se de passagem, figuram tão-somente uns poucos nomes, Vinicius de Moraes, Gilberto Gil e Caetano Veloso, por exemplo. Grosso modo, mesmo letristas extraordinários, que os temos muitos, na linha de Noel Rosa, Dolores Duran, Cartola, Nelson Cavaquinho, Ary Barroso, Lamartine Babo e Lupicínio Rodrigues, escreveram letras necessariamente pensadas sobre melodias, não raro produzidas simultaneamente, uma, praticamente, não existindo sem a outra.

Em Chico Buarque deparamos com o poeta dotado de absoluto domínio da carpintaria poemática, com formação acadêmica sobre os mecanismos da versificação. Exemplo disso (e são centenas no conjunto de sua vastíssima produção), tomemos a irretocável Construção, canção composta em 1971, cujo rigor técnico excede mesmo na perspectiva da grande literatura: versos dodecassílabos perfeitos; tônica na sexta e décima segunda sílabas, para não falar da forma como trabalha a estrofação, cruzando rimas em proparoxítonos, experimentações estéticas que o colocam, sem favor algum, entre os maiores nomes da literatura de língua portuguesa contemporânea.

Que dizer de A banda (1966), Olê, olá (1965), Pedro pedreiro (1965), Com açúcar, com afeto (1966), Quem te viu, quem te vê (1966), Roda-viva (1967), Carolina (1967), Retrato em branco e preto (1968), Sabiá (1968), Gente humilde (1969), Apesar de você (1970), Valsinha (1970), Atrás da porta (1973), Cala a boca Bárbara (1976), Tanto mar (1975), À flor da pele (1976), Mulheres de Atenas (1976), Trocando em miúdos (1978), Moto-contínuo (1981), Vai passar (1984), para citar obras-primas do cancioneiro popular?

A verdade é que Chico Buarque, como compositor, como letrista, como dramaturgo e como ficcionista, figura, hoje, em qualquer relação dos maiores artistas vivos do Brasil e do mundo. Como afirmou o crítico de artes Sérgio Rodrigues, à Folha de S. Paulo, tão-logo divulgada a escolha, “o Camões é pouco em se tratando de Chico Buarque de Hollanda. Se escrevesse numa língua menos secreta, o Nobel de Dylan se sentiria à vontade em seu colo”. É fato.

Por essas e outras, o Brasil deveria aplaudir em uníssono este símbolo da resistência à ditadura e a qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem, de negação à liberdade!

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