Chorume: uma metáfora do capitalismo na periferia

27/08/2022

Por Luana Marques (Cientista Social e doutoranda em Sociologia)

lua-marques@live.com

O chorume, tal qual uma metáfora do capitalismo periférico, tem como inspiração as incontáveis experiências das políticas públicas de limpeza e saneamento que mantêm os lixos recolhidos pelo Estado em terrenos a (céu) aberto, com queimadas nos finais das tardes e aterramento dos mesmos feitos de forma diária. Do descaso nasce o chorume.

Antes disso, catadores de lixo reciclável passam manhã e tarde inteiras coletando materiais descartados com potencial reutilizável e reciclável para venda, ia serviço da própria subsistência, sem nenhum equipamento de proteção que envolva botas, luvas ou qualquer assistência pública que seja. O laureado filme “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado, expôs situações similares; há trinta e três anos ele vem chocando os brasileiros e trazendo azia nas aulas de sociologia do ensino médio, sobreposto como um elemento distante, no passado e em outro território. Mas não é! Essa é a realidade do chamado e pouco descrito Brasil profundo.

Na BR que dá acesso à cidade de Iguatu, tratada por moradores como a capital do Centro-sul do Ceará, há um desses lixões que inspiraram a descrição acima e que também deu substância para montagem de uma peça de teatro que parodia essa situação sob o título de Chorume. A peça produzida pela companhia Ortaet remonta a metáfora “de um todo” abrangente: a realidade na periferia do capitalismo. Tamanha a consternação que a montagem me causou, à parte a composição artística e o teor dramático, que algumas vezes, pela intensidade, parecia mais uma partitura do Estudo Op. 25, nº 6, e que levava o público à completa fruição. A arte no interior do Ceará é boa, e quanto não há necessidade de me alongar. Antes de tudo, meu esforço de síntese se volta ao Chorume da periferia e os temas que o circunscrevem.

Como em interessantes narrativas russas, o drama vivido pelos catadores do lixão dessa região, e a dramaturgia que o descreve, em diversos momentos impacta qualquer observador com quebras de expectativas. Os catadores são em sua maioria mulheres organizadas por uma associação igualmente liderada por mulheres, as quais, em infindáveis ações, não conseguem reverberar os seus apelos e permanecem subsistindo por toda a vida em condições mais adversas, coletando todo tipo de lixo sem luvas. E a montagem traz esse choque de forma orgânica. Na composição que faço nesse texto entre a realidade que vi e a ficção da peça que apreciei, percebo as camadas do social sendo descobertas e, mesmo com alguma literatura social acumulada, as histórias ainda me surpreendem. A peça gera um frenesi para os públicos que gostam de emoção, mas difere do retrato do lixão que tem como cenário os sacos, fumaças e urubus voando. Neste não há fruição; só nos dói como um poema de Augusto dos Anjos.

Inspirada em qualquer história que busque narrar as dores do capitalismo na sua periferia (e isto inclui não apenas um lixão, mas as várias cidades do Brasil profundo que encontram na pobreza e desigualdade a síntese da nossa identidade), saí com mais perguntas que respostas. É triste ter que escrever isso para uma cidade interiorana, que tem o bucólico como imaginação social externa e o título de capital do centro-sul como imaginação social interna.

A peça é uma sátira corrosiva que faz doer em muitos momentos e diferentes formas, além de contraditoriamente arrancar muitos risos. É a bipolaridade do capitalismo. Mark Fisher escreveu sobre imaginação social, realismo capitalista e como as dores são também sociais. A bipolaridade social do capitalismo, então, tem como tradução o hiperestímulo das emoções com o verniz do “faça acontecer por você mesmo” e da entrega da dor como recompensa a partir do desemprego e abandono.

Essas questões são trabalhadas na peça por meio da própria composição estética. Recomendo a apreciação da montagem para os que tem estômagos saudáveis; para os lúcidos de coração, uma visita aos lixões espalhados pelo Brasil; para os indiferentes, a confirmação de que “não se preocupem com os horrores ditos, a vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior”, para parafrasear Belchior.

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