Cinema Falado, poema cantado

26/08/2023

Em termos artísticos, gosto de dar-me às subjetivações: Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, estão para a Música Popular Brasileira assim como Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Mello Neto, para a literatura, não necessariamente nesta ordem. Com a diferença de que os três primeiros, dispensadas as justificativas, mais ainda aproximaram a poesia da música. Nesse sentido, não é abusivo dizê-los mais legitimamente poetas, considerando-se as raízes do gênero, pois que a poesia, sabe-se, nasceu junto com a música.

Não é muito lembrar que a palavra “lírico”, do grego lyrikós, articula-se com a sua própria etimologia: canção que se vocalizava através da lira, instrumento musical de cordas. Nada mais convincente, portanto, para que se diga poetas os cantores, compositores e letristas aqui citados, razão por que se perde no vazio o argumento de que, dos três, apenas Chico Buarque estaria a merecer uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, uma vez que, além da música e do teatro, dedicou-se a escrever livros. O argumento, que beira à grosseria intelectual (e à insensibilidade estética mais escancarada), tenho ouvido, inclusive, de gente que lida com a literatura com razoável nível de intimidade — o nome na ponta da língua, mas, por dever de etiqueta, não o direi.

É minha obrigação dizer, no entanto, uma vez que este texto não se destina unicamente a iniciados, que o assunto polêmico terá representado, mesmo, uma dificuldade para críticos, perdidos esses na busca insaciada e talvez inútil de separar a poesia cantada da textual, esta, meramente verbal. A discussão é remota, muito embora, desde a Renascença, tenha-se tornado usual distinguir essa dualidade existente entre a melodia e a palavra. Uma tolice.

Ainda com relação aos três nomes do cancioneiro destacados na introdução do presente texto, urge evidenciar que todos eles transitam pelo terreno do literário propriamente dito. Se Chico Buarque é hoje reconhecido como um romancista de enorme qualidade, sobram na poesia de Gilberto Gil méritos inegáveis para que seja ele considerado um valoroso poeta, o que torna dispensável explicar as razões pelas quais ocupa uma das cadeiras da Casa de Machado de Assis.

Quanto a Caetano Veloso, só mesmo o preconceito ou a ignorância intelectual para negar-lhe o status de escritor, filósofo, pensador, agitador cultural, cineasta (pasmem!) e poeta de extração clássica, muito embora popular no sentido da veiculação bem-sucedida de sua arte quase inclassificável.

É dele, além do clássico “Verdade Tropical”, tão importante como interpretação do Brasil, guardadas as diferenças de olhares, quanto “Casa Grande & Senzala” ou “Raízes do Brasil”, o pouco conhecido “Alegria, Alegria” (não a música, belíssima), coletânea de textos críticos e de intervenção (no sentido atribuído a Antonio Cândido) organizada por Wally Salomão e publicada pela editora Pedra Q Ronca.

A propósito, não à toa, vira e mexe, um e outro amigo, sabendo-me “tiete” de Caetano Veloso, indagam-me a razão por que deixei passar em brancas nuvens, neste espaço, a festa de seus oitenta anos.

Ah, que imperdoável para quem ouve seus discos, lê e relê seus escritos, revê seu desconcertante “O Cinema Falado” e traz ao alcance da mão “Letra Só”, a bela edição da poesia de Caetano Veloso em livro organizado por Eucanaã Ferraz (Companhia Das Letras, 2003).

Minha forma de reverenciar o artista completo que é Caetano Emmanuel Vianna Telles Veloso na data em que comemorou seus oitenta anos.

Em tempo: Se não o fez, ainda, ouça urgentemente o irretocável “Xande canta Caetano”, de Xande dos Pilares. Há muito não se ouvia uma interpretação tão atenta ao espírito da letra, um jeito de cantar que dá brilho à dicção poética e ao ritmo musical da palavra articulada com tamanha exatidão, vigor e espontaneidade. Pérola.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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