Antônio Pereira de Oliveira
Coria o ano de 1943. Na fria madrugada daquele dia do mês de junho, saí de Fortaleza no trem, que fazia a Linha Sul, rumo ao Crato. Dentro de poucas horas foi ficando para trás a planície e, mais ou menos, na altura de Itapaí, o comboio iniciou a subida para o maciço de Baturité, atingindo o alto, numa marcha muito lenta. Daí para a frente notei que se acentuavam, cada vez mais, as características do semiárido.
Embalado pelo sacolejo do vagão e pelo tique-taque cadenciado de suas rodas sobre os trilhos de ferro, eu via desfilar diante dos meus olhos sonolentos a paisagem campesina causticada pelo sol. Próximo ao anoitecer, a partir da cidade de Afonso Pena, (hoje Acopiara), diligentes agenciadores de hotéis percorriam os vagões à cata de hóspedes.
Depois de breves paradas nos lugarejos de Quincoê e Suassurana, a composição finalmente chegou a Iguatu, termo da viagem nesse dia e lugar do meu destino. Já era noite feita. Desci na pedra da estação e, por instantes, fiquei perdido em meio às pessoas que ali se apinhavam, umas à espera de parentes ou amigos e outras simplesmente para ver o trem de passageiros, atração maior das pequenas cidades sertanejas cortadas por estradas de ferro.
Esgueirando-me por entre as espessas nuvens de fumaça e esguichos de vapor que emanavam da locomotiva, fui postar-me num sítio mais afastado, de onde melhor pudesse orientar-me sobre a direção a tomar.
Mais sossegado, sustentando pela alça a velha maleta com uns poucos pertences, fiquei distante do gentio em alvoroço. Um louco frenesi tomava conta dos viajores desembarcados. Igual desvario apoderava-se também dos “chapeados” que se atropelavam na disputa pelo carrego das bagagens. Apesar da agitação reinante, não deixei de atentar para alguns tipos populares que atraíam a curiosidade pública. Uma pobre mulher, idosa, de vestido muito curto, sobraçando um volumoso embrulho de papéis velhos, tocou-me o ombro e pediu: “meu bem, me dê mil réis”. Um pouco adiante, um homúnculo muito extrovertido, de rosto redondo, cabelo liso, olhos grandes, um cigarro caindo do canto da boca, descalço e metido em um terno surrado, forcejava por se fazer notado. Pelo tamanho dos olhos, era ver um caboré. Finalmente, um pouco mais distante, um pobre diabo chorava em altos berros, acuado pela molecada que se comprazia em molestá-lo, aos gritos de Barrão da Barra!
Não dei pela existência de carros no local. Somente uma ou duas figuras importantes do lugar possuíam automóveis, foi o que cheguei a saber depois. Grosso areal estendia-se por todo o largo, onde ficava a estação ferroviária. No lado que ia ter ao centro da cidade ficava o Hotel Palmeira, a principal hospedaria da cidade. Olhando-se nesse mesmo sentido, divisava-se a distância, sobre os encardidos telhados do casario, a torre da Igreja Matriz.
Cansado da viagem e bem impressionado com o pouco que me era dado ver, quando o povo se dispersou mais, guiado na escuridão, pelo clarão incandescente da luz elétrica instalada no alto da Caixa D’água da CIDAO, Usina de Beneficiamento de Algodão e Extração de Óleos, que se erguia bem ao lado do Hospital de Santo Antônio dos Pobres, dirigi-me ao Alto da Bonita, logradouro aonde ia morar. Iguatu foi mais um pouso temporário, no curso de meus dias, de onde saí, vinte e seis anos depois. Eu pertencia à casta itinerante daqueles que, deixando para trás as suas origens, vivem, por mero prazer ou obrigações do ofício, a correr mundo, usufruindo as benesses da hospitalidade em terras estranhas.
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