Começo e fim de um sonho

06/01/2024

No Lava Jato (não confundir com a Lava Jato, aquela que teve um canalha à frente), reencontro com o amigo Francisco Alberto Moreno, o Bertinho, que me lembra torcer pelo Botafogo em minha homenagem. De fato, faz isso uns bons cinquenta anos, desde os tempos de adolescentes em Iguatu.

A conversa rola solta, enquanto nossos carros tomam a ducha merecida. Eis que ocorre ao meu amigo relembrar de um fato curioso, que, à época, só aos contemporâneos da terrinha chegou em forma de boa notícia: “Totonho (era como me chamavam) fará teste na escolinha do Botafogo”. E o fiz, o primeiro, que eram dois os testes a que os pretendentes tínhamos de nos submeter. Guardo comigo, ainda hoje, como tudo aconteceu. Pasmem.

Era uma manhã quente do Rio de Janeiro em inícios de 1973. Fora à Cidade Maravilhosa a fim de fazer uma operação plástica (em realidade, algumas), ano e pouco depois de sofrer um acidente que quase me tirara a vida.

Acidente com fogo, grave, de que restam mais de meio século depois algumas cicatrizes. Mas não vou voltar ao ocorrido, que não se brinca com traumas, grandes ou pequenos, mesmo quando superados por força do tempo e das circunstâncias — assim de repente, sem que se perceba em que ritmo ou de que maneira, obra de Deus e dos santos (o Menino de Praga à frente), a imagem obsessiva se desmancha, e os olhos voltam a enxergar a beleza do horizonte. Mas voltemos a General Severiano.

Pois bem. Chego ao estádio do Glorioso por volta das 8, o coração aos pulos. Era tanto o despreparo, e tamanha a emoção, que só minutos antes de entrar em campo dei pelo meu despreparo: não levara chuteiras, e o calção tive de tomar emprestado.

Eis que aparece um anjo protetor e me atira, meio generoso e meio indelicado, um par de “gaetas” amarfanhado. Pior: se eu calçava então 37, 38 no máximo, a “salvadora” andava pelos 41, no mínimo. Nada não, pensei com meus cadarços: “Nilton Santos sempre atuou com dois números acima de sua medida, e é verdade. Dizia ser mais adequado para tratar com carinho a pelota, dar-lhe o jeito garboso e suave do aboluto domínio. Enciclopédia.

Em princípio, em meio a pelo menos 25 ou 30 garotos, postos em fila indiana, rola em minha direção, vinda de não sei onde e nem por que razão, uma bola, a saltar irrequieta sobre a grama maltratada. Era método deles surpreender covardemente o candidato.

Como que por milagre do Jesus Cristinho de que nos falou Bandeira, o poeta, o pé direito, atrevido e mais calmo agora, dá na esfera, por baixo, o minúsculo toque, ao que atende, submissa, como se diante de um craque.

Ocorreu-me lembrar do campinho da Lagoa da Telha, onde eu dera, no futebol, os primeiros passos, enquanto ela, a bola traiçoeira, dançava solene e doce, na coxa, no peito do pé, no próprio, onde mora o coração.

Eis que a uma pequena distância, alguém, que pelo tom autoritário da voz me pareceu ser o técnico, faz com a mão um comando: “Passa pr’ali, menino!” Eu fora selecionado.

Agora faltava o segundo teste, na quarta-feira seguinte, uma semana depois. É claro que muita água haveria de correr por debaixo da ponte, que deem um desconto ao chavão. É só uma parte da história.

Chego em casa (eu era hóspede do médico e primo Italo Barros Costa), ali na Epitácio Pessoa, Jardim de Alá, em Ipanema, e vem a notícia que põe por terra o meu sonho: “Está preparado? Você será operado amanhã bem cedo!”

Trouxe comigo as fotos, para guardar de lembrança e mostrar aos amigos. Assim, na contramão do desejo, o mais indomável e mais doce de todos os desejos do menino que fui, fez-se do sonho realidade, do improvável meio-campo estiloso, o professor de Arte.

Não fosse de Nelson Rodrigues a frase, bem que poderia ser minha: a vida, a vida como ela é.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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