Como escrever bem, o debate

28/10/2023

Gastei uma hora/pensando um verso / que a pena não quer escrever. / No entanto ele está cá dentro/inquieto, vivo, / e não quer sair. / Mas a poesia deste momento/inunda minha vida inteira. (Carlos Drummond de Andrade)

 

Nas últimas semanas, estabeleceu-se através da imprensa (jornal Folha de S. Paulo à frente) um curioso debate: “Como escrever bem?” O assunto foi objeto de excelentes artigos, nomeadamente os do colunista Sérgio Rodrigues, um craque em se tratando da produção de textos em que sobressaem algumas das principais qualidades da boa escrita: coerência, coesão e concisão. Além de outras qualidades que são adquiridas no próprio exercício da escrita, algumas delas decorrentes do contínuo hábito da leitura, da vivência diuturna com os bons autores, sem esquecer, claro, que, a exemplo do que ocorre em todos os campos da atividade criativa, escrever bem, em alguma medida, tem sempre um pouco da personalidade do próprio escritor, tomando-se a palavra aqui em seu sentido mais geral, ou seja, aquele que escreve, independentemente das motivações pelas quais o faz.

Em livro clássico, “Como se faz uma tese”, Umberto Eco (notável exemplo do bom escritor), recomenda: “Não imite Proust. Nada de períodos longos. Se ocorrerem, registre-os, mas depois desmembre-os. Não receie repetir duas vezes o sujeito. Elimine o excesso de pronomes e subordinadas.”

O escritor italiano, como deixa evidenciado, refere-se a Proust não para exaltar as qualidades do romancista francês naquilo que sugere ser ele inimitável: o fôlego para discorrer em períodos “quilométricos” sobre a vida de Marcel, o protagonista do seu inigualável “Em busca do tempo perdido” (sete volumes) e das mais de cem outras personagens do seu livro monumental. Numa palavra: “Não ouse ser como Marcel Proust”.

Há poucos anos, um livro sobre a matéria estourou no mercado livreiro do mundo inteiro, conquistando o interesse de pretensos escritores, jornalistas, advogados e muitos outros profissionais que lidam com a produção de textos, como se se tratasse de um livro de receitas da boa escrita.

“Como escrever bem”, era o título, do jornalista norte-americano William Zinsser. Já nas primeiras páginas, o autor diz: “O excesso é o mal da escrita americana. […] Somos uma sociedade sufocada por palavras desnecessárias, construções circulares, afetações pomposas e jargões sem nenhum sentido.” Como se vê, Zinsser ecoa Umberto Eco quando trata daquela que lhe parece ser a maior qualidade do bom escritor: a capacidade de dizer o que deseja em texto econômico, sucinto, evitando floreios e rebuscamentos que pouco ou nada acrescentam às ideias traduzidas em palavras. Bingo.

Entre os grandes escritores brasileiros, é conhecido o caso do alagoano Graciliano Ramos, cuja prosa, enxuta, descarnada, desprovida de artifícios desnecessários, calcada em substantivos secos e precisos, talvez seja o exemplo mais irretocável da melhor escrita. Sob este aspecto, ouso afirmar, nada em língua portuguesa se deve comparar aos romances “Vidas Secas” (1938) e “São Bernardo” (1934), absolutos em concisão, clareza, objetividade e perfeito domínio da linguagem. Tudo, devo ressaltar, sem qualquer prejuízo em termos estéticos, pois que se trata de literatura em seu sentido pleno, dotada de originalidade estilística e beleza plástica exemplarmente sedutora.

É improvável que William Zinsser tenha lido o escritor brasileiro, mas estou certo de que, se o tivesse feito, haveria de tomá-lo como modelo do que afirma em seu livro de forma conclusiva: “[…] o segredo da boa escrita é despir cada frase e deixá-la apenas com seus componentes essenciais.”

A coisa, contudo, não é tão simples o quanto parece ser. Como o próprio debate a que me refiro no primeiro parágrafo dá a ver, existem outras possibilidades, outros caminhos para o sucesso na difícil arte de escrever bem. Assim como os concisos, que fazem da economia lexical e sintática o segredo de sua arte, há aqueles que ficam a meio caminho, na linha de um Eça de Queiroz ou um Machado de Assis; os que se alargam em adjetivações e floreios, maneirismos, construções frásicas longas e artificiosas, e nem por isso menores enquanto escritores fiéis a estilos de época definidos, com seus clichês e manias, à maneira de José de Alencar, no Brasil, e os igualmente românticos Camilo Castelo Branco e Almeida Garret, em Portugal.

Se a concisão é elemento incontornável em determinados escritos, nos quais a clareza de estilo e objetividade expressiva são elementos altamente recomendáveis, na literatura é diferente e nem todo bom escritor é Graciliano Ramos. Não há, portanto, segredos, regras infalíveis ou obrigatórias. Importa, mesmo, é aquele traço pessoal intransferível, aquele jeito incomunicável de escrever com estilo pessoal, fazendo escolhas subjetivas capazes de dar forma elegante ao texto, para o que pesa positivamente a sensibilidade estética de cada um – que pode ser educada, nunca escravizada a gramatiquices. Para isso, insisto, não há receitas, modelos a seguir. É conversa íntima do escritor com ele mesmo, sem perder de vista, por óbvio, aquele “leitor ideal” de que nos falou Umberto Eco.*

No mais, é lendo muito, lendo apaixonadamente, que se descobre o caminho e se bebe do melhor remédio contra defeitos e limites, até se tornar um bom escritor.

 

*Aquele que tem um papel ativo na leitura, que permite não só compreender o texto, mas reconhecê-lo em sua especificidade. 

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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