Há quarenta anos leio a Folha de S. Paulo. No começo, assinante do jornal, recebia-o com enorme atraso, aos pacotes chegados pelo correio com dez, doze edições. Interessavam-me, mesmo assim, as colunas, artigos de opinião e, com poucas exceções, os editoriais, deliciando-me com a qualidade do texto sob cuja “impessoalidade” podia-se perceber a mão segura de Otávio Frias, o pai, e sua aguda leitura da realidade política do país, algum tempo depois substituída pela elegância de estilo e acuidade de visão de mundo do filho de mesmo nome, outro marco divisor de águas do jornalismo brasileiro.
Aos domingos, durante muitos e muitos anos, para além de realizar uma leitura corrida, como é costume na perspectiva das publicações diárias, mergulhava eu num tipo de ‘close reading’ dos ensaios do Mais, caderno de cultura que ressignificava o repertório dos estudiosos e amantes da literatura, do cinema, das artes plásticas e do teatro nacionais e do mundo.
Deste, num tempo em que éramos condicionados a recortar e guardar tudo o que nos interessasse nos matutinos, montando pequenos arquivos que cresciam com o passar dos dias, para a alegria das traças e do mofo, selecionava eu, com a atenção cirúrgica no manuseio da tesoura, aquilo a que pudesse recorrer para enriquecer a minha formação intelectual-humanística.
E veio o CD, o pequeno disco capaz de arrebanhar num só volume, com texto integral, edições de cinco anos, possibilitando-me ir e vir através do tempo, num simples toque de mouse, para tudo o que ocorria de relevante ou não na história recente do Brasil e do mundo inteiro. Centenas de recortes, milhares talvez, tiveram, assim, aos poucos, o destino humilhante: ‘a lata’ do lixo, livrando-me das recorrentes reclamações da mulher – “Isso só acumula poeira!”, era a assertiva a que fui submetido anos a fio.
Hoje, ainda na cama, munido do iPad, religiosamente, leio a Folha de S. Paulo mal abrem-se os primeiros raios do sol. Não é raro que me irritem um e outro editorial, um artigo, uma opinião ou mesmo, o que foi sempre uma de suas marcas, a sub-reptícia e inevitável necessidade do mais lido e mais importante jornal brasileiro, como ocorre a qualquer outro, por razões financeiras, de equilibrar-se sobre o delicado fio que separa o joio do trigo, o bem intencionado do inconfessável, o ético do que escorre de malcheiroso por entre os dedos da natureza jornalística.
Nesta sexta-feira 19, quando sento à frente do computador para escrever a minha coluna semanal do “A Praça”, replicada no blog e no Segunda Opinião, outro não deveria ser o leitmotiv do texto: 100 anos da Folha de S. Paulo.
Como é próprio na vida de um jornal, mesmo em se tratando dos maiores, é claro que sua linha editorial corre um tantinho ao sabor das águas partidárias, que seu compromisso com o público muitas vezes se esconde sob o manto da conveniência que nunca se quer revelada para o leitor, a que chama, no editorial da edição de hoje, Sua Excelência, o leitor.
O incontrastável, aquilo para o que não se pode fechar os olhos a bem da justiça e do dever de gratidão, no entanto, é que o aniversariante eleva e elevou sempre, aos píncaros do que existe de essencial em termos jornalísticos, a sua missão de bem servir ao país, de proporcionar ao leitor, como nenhum outro entre nós, o contato diário com a pluralidade do pensamento e das ideias. E a consciência de que, como é norte de uma sociedade democrática e livre (tão posta em risco nesses últimos anos), outros veem o mundo diferentemente de nós.
Não é outra a razão, sabe-se, por que a imprensa brasileira vem sendo perseguida de forma tão determinada pelo atual presidente da República e seus apaniguados de elite, os militares. Em meio a este obscurantismo e ao retrocesso crescente, mais que nunca se deve aplaudir a Folha no transcurso do seu centenário.
É que o me propus fazer!
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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