Pablo Bandeira*
De início, não sei bem o que me levou a escrever, principalmente, escrever sobre algo que demanda tanta intimidade que até mesmo sinto vergonha de ler o que está sobre o papel até agora. Os dias inconclusivos, como gosto de me referir a eles, se concretizam para mim através da sensação silenciosa de uma ansiedade por algo que, definitivamente, não vai chegar, funcionam através de uma engenharia secreta que existe somente dentro da minha cabeça. É algo tão abstrato e complexo que a tentativa de defini-lo não levaria a lugar algum, pois, tímido ao pensamento como é, o raciocínio serve somente para afastá-lo e, quando não consegue, este se transforma em algo ainda mais abstrato e complexo para assim manter em segurança seus segredos e motivações.
Os dias inconclusivos estão comigo há mais tempo do que consigo imaginar (ou lembrar) e, por isso, o truque subserviente de esconder-se ao raciocínio já não mais funciona e eu posso facilmente tentar descrevê-lo sem que o pensamento inunde a sua tremenda timidez e desatine pelo impalpável. Vou descrevê-lo para vocês como uma máquina de características bastantes simples e um único objetivo: produzir nuvens.
É fácil prever seu funcionamento, mas irremediavelmente difícil lidar com o produto final. O início das atividades da derradeira amiga começa como uma queimadura de leve na cabeça – ou melhor, por dentro dela – e vai aumentando gradativamente como se o esforço da máquina não fosse suficiente para aguentar sua coalisão.
Nesse momento, pequenas ondas de vapor escapam por seus complexos mecanismos e flutuam livremente causando uma ligeira tontura, os nervos do cérebro se chocam, os olhos falham, a temperatura oscila e os músculos do corpo se enrijecem como num grande exercício físico. A máquina se expande e contrai num grande frenesi e, por muitos momentos, seria fácil ler os pensamentos preocupados de seu operador (se existisse um) acerca dos riscos iminentes que o cercam. Ninguém diria que uma explosão de nuvens seria tão devastadora assim.
O remexer da máquina, nesse momento final, fica mais intenso e, assim, é possível vê-la aos pinotes sobre o chão, esperneando em busca de matéria-prima para terminar sua produção. Ao lado dessa paisagem que aos olhos comuns seria dada como mórbida, é possível, também, enxergar uma grande mesa redonda moldada de um material intocável e preenchida quase que totalmente por espécimes mais variadas de frutas exóticas como blueberries, amoras, mirtilos e uvas que compõem, em sua amplitude, um panorama tão azul-enegrecido que facilmente seria confundida com o negro do céu. Esse móvel, como veremos a seguir, tem como única finalidade o abastecimento da engenhoca.
Os momentos finais se aproximam e, pela cor identificada anteriormente, já é presumível que tipo de nuvem teremos ziguezagueando por aí. Nesse momento, o simples aproximar da máquina perto da mobília parece despertar alguma espécie de instinto interior em ambas as partes, uma vez que o primeiro dá início a algum tipo inexplicável de sublimação, vaporizando-se em pequenas palavras e acontecimentos que, vagarosamente, vão sendo consumidas pela gula mecânica. Durante esse ritual, aqueles que chegam próximo suficiente da máquina sem despertar seus poderosos instintos defensivos conseguem ouvir os sussurros semiesquecidos que vagueiam pelo interior do inconsciente e que, em situações normais, formariam palavras e cenas vívidas, ainda que fosse impossível distinguir entre a realidade e a memória.
Aqui, o corpo físico já se encontra cansado, exausto pela grande movimentação que está acontecendo. Não é anormal que, durante o processo, faltem palavras para conversas em processo ou que o indivíduo se torne irritadiço com a menor movimentação ao seu redor. Os olhos, principais afetados por conta de sua proximidade com a majestade da produção, podem apresentar falhas como uma superprodução de lágrimas ou um embaraço para construção de imagens, causando um terrível mal-estar no resto do organismo.
A máquina para repentinamente e, nessa parte do processo, já é possível ver a magnificência de sua produção, uma grande nuvem azul-escuro que se expande silenciosamente engolindo até mesmo sua reprodutora, insatisfeita com o tamanho disponível para a sua grandiosidade. A nuvem, aos poucos, passa a ocupar não somente a cabeça, mas vai tomando conta de todo o corpo, retesando ainda mais os músculos exauridos da atividade anterior. Ao chegar ao esôfago, deixa-lhe uma marca simplória, como um animal marcando seu território, amarra-lhe um nó para que, assim, nenhuma outra nuvem consiga traçar o mesmo caminho que o seu.
A trajetória da nuvem, visceral pela própria natureza de sua criação, segue um caminho contínuo enquanto desce pelo corpo chegando, em poucos momentos, ao coração. Melindrosa, sabe que perderia uma luta se chegasse a travá-la, consumir um órgão dessa magnitude é mais difícil que parece, mesmo para algo de sua magnitude. Assim, num momento de adaptação, ela se expande ao redor de seu alvo, adquirindo uma forma de anel.
O coração, antes sozinho, agora possui um companheiro que, lentamente, toma-lhe as forças e a cor, fazendo com que se transforme também parte dessa paisagem cósmica de um azul enegrecido e aterrorizante.
*Pablo Bandeira é estudante de Economia da URCA onde trabalha pesquisa científica voltada para principalmente para o mercado de trabalho iguatuense. Apaixonado por literatura brasileira, se considera um grande leitor, mas se acanha na escrita.
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