Tenho pela obra do economista Celso Furtado, esse notável paraibano de Pombal, falecido em 2004, no Rio de Janeiro, uma admiração que extrapola os limites meramente intelectuais. Há no exemplo de vida desse brasileiro ilustre alguma coisa grandiosa, o que me levou, conhecendo “apenas” em linhas gerais sua densa produção acadêmica na área econômica, sobre a qual minha formação impõe assumida incapacidade de emitir juízos abalizados, dei-me a ler tudo que o mercado editorial tem disponibilizado acerca da própria vida de Celso Furtado e da repercussão internacional de suas ideias, projetos, proposições – a forma, enfim, de pensar o Brasil e a América Latina.
Nessa perspectiva, pois, é que li há muito tempo a trilogia autobiográfica do intelectual paraibano, composta pelos livros A fantasia organizada, A fantasia desfeita e o belíssimo Os Ares do mundo. Os três, iguais na qualidade formal do texto e na sensibilidade estética que emana de suas páginas. Livros para se ter ao alcance da mão, como se fossem livros de consulta, tão ricos e enriquecedores que são sob todos os aspectos, notadamente naquilo que diz respeito à interpretação do Brasil, na linha do que fizeram, por caminhos distintos, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Helio Jaguaribe, Caio Prado Jr., Darcy Ribeiro e (antes de pedir que esquecessem o que havia escrito) o próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Expulso do País pelo golpe de 1964, Celso Furtado produziu no exterior o que há de mais expressivo na sua obra, período em que se dedicou a lecionar nas mais prestigiadas universidades da Europa e dos Estados Unidos, a exemplo das universidades de Paris, Yale, Cambridge e Columbia. É desse período que trata o segundo volume de sua trilogia, A fantasia desfeita.
Mas, como disse, é no terceiro título, Os ares do mundo, que o leitor depara-se com o fascinante universo intelectual e humano de Celso Furtado, suas viagens por diferentes países, inclusive aqueles do antigo bloco comunista, da Ásia e da África. A essa altura de sua autobiografia, é que sobem à cena da narrativa elegante de Furtado, com níveis de intimidade muitas vezes surpreendentes, nomes importantes como Jean-Paul Sartre, Juan Perón, Ernesto Sabato, Che Guevara e Glauber Rocha, para citar apenas alguns dos companheiros de jornada no exílio do autor de Formação econômica da América Latina.
Agora por último, lançado pela Editora Schwarcz, em 2021, tomei nas mãos e li-o de um fôlego, porque sedutor como poucos do gênero, o livro Celso Furtado – Correspondência Intelectual, 1949-2004, com que Rosa Freire D’Águiar brinda os admiradores do economista paraibano num trabalho notável de organização, apresentação e notas que dá visibilidade ao missivista Celso Furtado. São ao todo, quase trezentas cartas, enviadas ou recebidas por ele, cobrindo um extenso período e dando a ver um panorama até aqui desconhecido em livro do pensamento de Celso Furtado.
A leitura desse livro precioso, muito mais que nos três volumes de sua autobiografia, proporciona àqueles que ignoram a grandeza de Celso Furtado, sua importância como homem de ideias, como crítico profundo das contradições a que estiveram condenados, sempre, os países da América Latina, seu prestígio internacional e sua atualíssima visão dos problemas do Brasil, para os quais, do alto de sua inteligência iluminada, apontou, invariavelmente com clareza, alternativas de ação. É nessas cartas, mais que nos livros autobiográficos, que se pode ver de perto o quanto foi solicitado pelos principais centros intelectuais do mundo, e como se deu ao luxo de recusar, por razões de agenda ou por discordar de suas intenções, convites de trabalho e parceria com pensadores famigerados como Habermas, o temido e respeitado pensador da Escola de Frankfurt.
Ao se virar a última página do livro, a sensação é ao mesmo tempo de orgulho e de revolta ao saber o que o golpe de 1964 fez com intelectuais brilhantes como Celso Furtado, e o que esse temível “comunista” representou para a inteligência dos Estados Unidos e da Europa ao longo dos vinte anos em que foi proibido de voltar ao Brasil.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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