Crime e Castigo, de Lev Kulidzhanov

09/10/2021

Leitor propôs, dia desses, que escrevesse livro a partir das muitas adaptações de livros de Fiódor Dostoiévski para o cinema. O tema, numa perspectiva mais ampla, é sedutor, uma vez que é significativo o que existe em termos cinematográficos a partir de obras canônicas por cineastas de prestígio, como Stanley Kubrick, Kurosawa, Welles, Claude Chabrol e tantos outros grandes nomes da sétima arte. Ocorre-me lembrar de filmes excelentes cujos roteiros foram extraídos de clássicos da literatura universal que vão de Dom Quixote, de Cervantes, a Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Dostoiévski, então, aparece com destaque entre os grandes escritores que tiveram seus romances versados para a telona. Tomo um deles, Crime e Castigo, como exemplo do que se pode fazer de irrepreensível no cinema.

Filme autoral, em que se pode perceber a mão de um diretor rigoroso em todo o processo de produção da película, que vai da preocupação com a direção de arte à de elenco, Crime e Castigo (1970), de Lev Kulidzhanov, é exemplar digno de nota por suas inegáveis qualidades estéticas, indo muito além do que era uma prática recorrente no caso da Rússia: prestar-se a difundir junto ao grande público o que existe de mais relevante na literatura do país, preservando valores e fomentando a identidade nacional a partir de sua língua-padrão.

O filme, no entanto, notabiliza-se, antes de tudo, por sua beleza enquanto obra de arte, mesmo quando se faz perceber o empenho do diretor em assegurar fidelidade ao texto original, o que não raro restringe o que, sendo próprio da linguagem cinematográfica, enseja ao diretor atirar-se em experimentos estéticos capazes de realçar o seu talento criativo.

O roteiro é quase impecável sob este aspecto: a densidade dramática do romance, o ritmo da narrativa, a própria técnica composicional do livro são elementos observados pelo diretor, o que, em algumas passagens do filme, enseja que a imagem acrescente ao que já se conhece do livro.

O perfil psicológico de Raskólnikov, por exemplo, é de uma felicidade notável: George Taratorkin, intérprete de Rodion Romanovich Raskólnikov (é este o nome completo do protagonista), soube elaborar sua personagem de forma a transmitir os estratos mais profundos da alma humana, algo sem o que nenhuma adaptação de Fiódor Dostoiévski pode ser considerada de real qualidade.

Mas outros elementos merecem destaque no filme, a começar pela opção pelo preto e branco (estonteante) com que Lev Kulidzhanov trabalhou a semiótica fílmica, acentuando as zonas escuras da alma e os distúrbios psiquiátricos de Raskólnikov. A angústia que decorre do sentimento de culpa, essência dostoievskiana do enredo, é destacada pelo uso da luz, outro elemento estético digno de nota.

O diretor russo vai além: o formato CineScope, ao ampliar a medida do quadro, enseja um efeito contrário e serve para intensificar a solidão da personagem: no livro, ressalte-se, embora morador de um minúsculo aposento, são recorrentes as cenas em que Raskólnikov vaga como um sonâmbulo pelas ruas de São Petersburgo.

Não fosse, já, impressionante o resultado dessas escolhas do ponto de vista da estética fílmica, é elogiável a sensibilidade visual de Kulidzhanov em termos de adaptação. Aqui, diga-se por oportuno, o que, a ouvidos menos atentos, pode parecer um defeito, é recurso cinematográfico bem sucedido: a distorção sonora é explorada no sentido de ressaltar a desorientação da personagem.

Fotografia, desempenho do elenco, direção de arte, roteiro, utilização da câmera, luz, ambientação, guarda-roupa, tudo no filme é muito bom.

Por essas e muitas outras razões, ouso dizer que esta é a melhor adaptação de Dostoiévski para o cinema. Um belíssimo filme realizado por um diretor desconhecido do grande público. Kulidzhanov fez sua estreia em 1956, com Tudo Começou Assim, longa-metragem realizado a partir de uma peça de Federico Garcia Lorca (1898-1936).

Escreveu e dirigiu outros trabalhos importantes: O Caderno Azul (1964), sobre Lênin, em que discorre sobre métodos e ações políticas do líder revolucionário, merece destaque.

Em 1991, reencontra Georgi Taratorkin, de Crime e Castigo, com quem dá a ouvir seu canto de cisne: Sem Medo de Morrer.

Morreria em 2002.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

MAIS Notícias
Vida e beleza em meio aos mortos
Vida e beleza em meio aos mortos

Uma manhã de sol, em Paris, sou acordado bem cedo por um amigo brasileiro que chega à cidade pela primeira vez. Era espírita devotado, queria, antes de qualquer coisa, visitar o Cemitério Père Lachaise. Não me ocorreu que essa fosse uma prioridade no programa de...

Humano, demasiado humano*
Humano, demasiado humano*

A vida entre livros leva-nos a compreender pensamentos "antípodas", e a admirá-los, na contradição de desencontrados saberes. Mais que isso, numa espécie de personalização múltipla, de desdobramentos anímicos, a enxergar as coisas como que por espelho de mil faces - e...

Se o desejo acaba
Se o desejo acaba

Durante happy hour, conversamos em grande roda sobre infidelidade. Embora delicado, é tema de pauta, num tempo em que "ficar" é a palavra que define uma relação sem compromisso. De ambas as partes, por óbvio. Penso que a infidelidade acontece quando um relacionamento,...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *