Acordei menos disposto nesta manhã. Pensei em ligar a televisão para distrair um pouco a mente, mas o ânimo, tão diminuto, sequer me permitiu alcançar o controle-remoto. Ao lado do meu leito, livros que nunca mais li enfeitam, de cores únicas, o quarto totalmente bege que, de tanto me fazer presente nele, me causa náusea. Se ao menos eu pudesse sair da cama; se ao menos eu pudesse ir até o corredor do hospital, para ver as enfermeiras, as médicas e as pacientes aprazíveis – esta última, apenas as que estivessem em condições melhores que a minha, evidentemente -, talvez não detestasse tanto esse lugar como agora.
Mas não é possível almejar o corredor quando não se consegue ir nem mesmo ao banheiro dessa suíte mórbida. Mesmo consciente de que hospitais foram feitos para tratar a nós, os enfermos, nunca gostei da ideia de internar-me… E vejam o que é o destino, não é mesmo?! Hoje, simplesmente feneço em um. Há meses e meses não sinto o cheiro de terra molhada, algodão doce, pipoca, perfume, comida-de-panela, bebida (essa é da qual mais sinto falta)… Tudo o que o meu olfato alcança, querendo ou não, são os cheiros das ampolas, do álcool e das regurgitações oriundas das minhas constantes crises.
A doença não levou a minha saúde… levou a minha vida. Carregou consigo a minha vontade de viver. Nunca mais pude tocar o banjo que era do meu avô, e que me fora dado pelo próprio querido velhinho poucos anos antes de sua ‘‘viagem’’ (era assim que ele chamava o ato de morrer). Já não posso mais dormir sem que as dores me acordem em meio a gemidos, agonias e convulsões. Quando isso não ocorre, sou despertado por pesadelos ou, pior ainda, por sonhos belos, onde estou andando, correndo, sorrindo, brincando… Vivendo!
Da janela que dava para uma rua de pouco movimento, da qual é o meu único contato com o mundo lá fora, o mundo externo, observo as pessoas que jamais imaginariam que eu as invejo; ‘’Lhe invejo por simplesmente não ser eu’’, como bem escreveu Fernando Pessoa em seu magnífico poema ‘’Tabacaria’’. Invejo até a vida curta dos gatos que, por serem hábeis na arte de andar em toda sorte de muros, visitam-me vez ou outra. Gosto muito da companhia do gato de cor alaranjada. Ele é dócil e, constantemente, como um pássaro, pousa na janela e fica ali, simplesmente ali, parado, deitado, olhando para o nada, como eu…
Às vezes, muito raramente, recebo visitas de mulheres que já foram minhas (algumas, não as quis, outras, não me quiseram mais), e, confesso, não gostaria que nenhuma delas viesse mais. Tenho certeza de que prefiro o escárnio à pena. Zombem de mim, minhas companheiras de outrora, mas por favor, como uma última consideração pelo o que vivemos, não sintam a mínima compaixão fraterna. Não suporto bondade para com coitados. Hoje, impossibilitado de ser homem, ainda assim, não recebo tal baixo epíteto de bom grado; não recebo dó como os grandes espíritos entregues ao desespero. Recebo ira, não pena!
A eutanásia ainda não é permitida em nosso país. Mas não pretendo discorrer sobre os motivos políticos e religiosos que dão base a sua não legalização. Se eu alcançar a tomada do maquinário que sustenta a minha frágil e debilitada vida; que faz meu órgão afetado trabalhar forçosamente, poderei, por fim, deixar de existir para sempre. Sei que minha família ficará decepcionada, pois fui muito religioso em dado momento da minha vida. Sei que as poucas mulheres que ainda gostam de mim, estupefatas, sofreriam por certo período que, apesar de eu saber que duraria pouco tempo, não me agradaria fazer passa-las por isso. Também não quero deixar essa vida sem dizer tudo o que preciso e sinto, guardado há muito nesta mente confusa.
As injeções que me aplicam, os comprimidos.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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