Escrita por um traidor e assinada por um fraco, a Carta à Nação do presidente Bolsonaro exemplifica a máxima popular acerca da dubiedade de resultados num único fato: “Foi boa mas foi ruim”.
Boa porque tranquilizou o país do ponto de vista de sua instabilidade econômica e dizimou indícios de que pudesse a crise política resultar num golpe ao estilo 1964. Ruim porque, de forma categórica, serviu para expor às claras o que já sabíamos: o país vem sendo (des)governado por um pusilânime duplo, um doente de caráter que oscila entre a valentia de palanque e a frouxidão do “day after”, que dá conselhos pacifistas a seguidores a quem recomendava a prática de atos violentos um dia antes. Um vexame.
Lembra-me, componentes morais à parte, pela semelhança de caráter psíquico, a personagem Goliádkin, da novela O Duplo, de Fiódor Dostoiévski, publicada em 1946.
Como o presidente frouxo, a personagem de Dostoiévski tinha um distúrbio psiquiátrico que o levava a se sentir perseguido, enxergando inimigos que a todo instante tentavam prejudicá-lo, humilhá-lo, destruí-lo.
O livro, publicado no mesmo ano que Gente Pobre, o romance de estreia do autor, se não é uma obra-prima, pelo menos em se tratando de um escritor do gigantesco talento de Dostoiévski, deu a ver a sua genialidade ao examinar a natureza humana, suas contradições, suas fragilidades e, principalmente, o lado torto da personalidade de algumas pessoas, a exemplo do que se pode constatar no “mito” brasileiro chamado Jair Messias Bolsonaro.
O texto da carta, e o que a ela se seguiu, não fosse humilhante para quem, como o obsessionado presidente, vomitava valentia diante de seus inflamados seguidores, seria engraçado, talvez digno de pena, vê-lo, num mesmo dia, ajoelhar-se diante de Moraes, desmanchar-se em elogios a um país comunista e implorar a caminhoneiros que insuflara, que mantivessem a calma e desbloqueassem rodovias.
Depois de chamar Alexandre de Moraes de “canalha” e aconselhá-lo a “pegar o boné e sair”, Bolsonaro agora diz que tem com o ministro, a quem chama de professor, apenas “conflitos de entendimento”. Em lugar de conclamar o presidente do STF a enquadrar seu desafeto, diz que buscará seus direitos na Justiça, assim, com a mansidão de um cordeiro arrependido.
Mas, combinemos, nada é mais vergonhoso para o “mito” que revelar em documento a sua pusilanimidade ao afirmar não ter tido a “intenção de agredir” outros Poderes no enlouquecido pronunciamento do 7 de Setembro. Hilário, não fosse ridículo.
Em O Duplo, depois de viver as suas fantasias, as suas obsessões, a sua loucura e a sua ciclotimia sem freios, Goliádkin lamenta “não ser forte na oratória”, como a pedir a clemência e a compreensão de todos.
Tudo, claro, antes de ser recolhido a um manicômio como doente mental. No caso do presidente brasileiro, no entanto, a recorrência do seu envolvimento com a prática de crimes constitui indícios de que será outro o seu destino.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
0 comentários