DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES

21/09/2024

 

Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música “Paralelas”, para a qual diz ter escrito outro final, já gravado, por aqueles dias, pela cantora Vanusa. Como o disco já estivesse sendo prensado, Erasmo lamenta ser irreversível sua difusão com o texto original.

Curioso e invariavelmente atento às sutilezas de estilo e feeling poético, Braz pede-me uma opinião sobre qual das versões é poeticamente melhor.

Eis a questão.

A primeira versão, gravada por Erasmo Carlos, mais bem trabalhada do ponto de vista poético, no meu entender, é esta: “E as borboletas do que fui/pousam demais/por entre as flores do asfalto/em que tu vais”.

A segunda versão, gravada por Vanusa, e que faria maior sucesso, é mais simples, mais direta em seu lirismo ligeiramente derramado: “Como é perversa a juventude/do meu coração/que só entende o que cruel/o que é paixão”.

Minha, é mera subjetivação a escolha, pois que em matéria artística nem sempre o rigor acadêmico deve ser tomado como parâmetro ou prova de acerto. A poesia traz em si seus segredos, suas idiossincrasias, também eles sujeitos ao entendimento íntimo, à cumplicidade subjetiva a que se sujeita a emoção estética ou mesmo as limitações do crítico.

As doutrinas em torno do fazer poético constituem um campo de estudo extremamente vasto, e são historicamente associadas à filosofia grega, de que Platão e Aristóteles são as bases incontornáveis. Da mimese ou imitação, como de início se supôs ser o seu caráter, a poesia alcançou outras dimensões em termos axiológicos ou valorativos, passando do dogmático aristotélico para a abstração ética de Horácio, que em sua “Arte Poética” exalta o papel do poeta: deleitar e comover na medida exata e na mesma proporção.

Donald A. Stauffer, em livro clássico sobre a natureza da poesia (The Nature of Poetry, 1962), adverte que “a natureza da poesia é fluida, de forma que as suas leis, à semelhança das leis da Natureza, podem ser deduzidas como princípios genéricos no interior dos quais os poetas se movem facilmente, de acordo com a sua própria índole, e sem nenhum empecilho ou coerção”.

Sem entrar no mérito das razões por que Belchior terá decidido mudar os versos finais de uma de suas obras-primas, igualmente bem interpretada por Erasmo Carlos e Vanusa, e desculpando-me por incorrer em inevitável olhar para o campo teórico, vasto e complexo como a própria poesia, evidencio que também ao leitor é dado o direito de escolher de conformidade com sua íntima motivação, seu estado de espírito, suas circunstâncias existenciais, seu repertório, sua sensibilidade estética.

De minha parte, como encontro-me no instante em que escrevo esta crônica semanal, sinto-me mais tocado, mais envolvido e mais cúmplice da poesia em sua primeira versão, cuja força sensorial, estando a meio caminho entre a razão e a emoção, como a transitar de Kant a Hegel, faz escolher a bela imagem das “borboletas do que fui pousam demais por entre as flores do asfalto em que tu vais”.

Não é demais lembrar que a relatividade é atributo inerente à poesia, mesmo quando sobre ela nos debruçamos armados com os instrumentos da ciência, na linha do que professa o respeitado teórico Johannes Pfeiffer, de quem tomo, à guisa de conclusão, a irrecusável afirmação: “A poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser, não claridade do entendimento, mas verdade do sentimento”.

Que falta Belchior nos faz.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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