A estética da fome faz da fraqueza a sua força, transforma em ato de linguagem o que é dado técnico. Coloca em suspenso a escala de valores dada, interroga, questiona a realidade do subdesenvolvimento a partir da própria prática. Ismail Xavier, Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome.
No livro “Duas formações, uma história – das ideias fora de lugar ao perspectivismo ameríndio” (Editora Arquipélago, 2021), o crítico literário e professor Luís Augusto Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, retoma com brilhantismo uma antiga discussão em torno do que se pode definir como ‘formação da literatura brasileira’, tema, como sugere o próprio título da obra, explorado em trabalhos clássicos de autores importantes, a exemplo de Antonio Candido e Roberto Schwarz. Mas é preciso destacar que Fischer o faz em nova chave, empenhando-se, com sucesso, em colocar o assunto pesquisado numa perspectiva mais bem delimitada do ponto vista geográfico e espacial, o que acrescenta positivamente ao debate, e ressignifica aspectos fundamentais dos autores aqui citados.
Somando-se a tantas outras tentativas de mapeamento da prosa de ficção brasileira, para Fischer existem duas grandes regiões literárias no Brasil: a primeira, da “plantation”, assentada em relações produtivas marcadas pela escravidão ou resquícios dela, e o indisfarçável compromisso com o exterior, calcada numa política de exportação, que teve o Rio de Janeiro como centro. A outra, do “sertão”, voltada para o mercado interno. Fischer conclui que a literatura brasileira, assim, é veículo de expressão dessas duas regiões, sendo seus maiores representantes, respectivamente, Machado de Assis e Guimarães Rosa.
É preciso evidenciar, contudo, que tais tentativas de mapeamento incorrem em assumidas imprecisões, e constituem tentativas de contribuição para uma discussão complexa e ainda inconclusa, com possibilidades de exame que vão muito além do campo estritamente literário. Sob este aspecto, aliás, o próprio Luís Augusto Fischer ressalta, à página 23 da primeira edição, com a qual trabalho, que outros discursos comportam a mesma abordagem, como a admitir de cara limpa que sua tese se estende para outras linguagens, outras formas de expressão; o cinema, por exemplo, matéria que nos interessa diretamente no presente artigo, tomando por base o filme “Deus e o diabo na terra do sol”, cujos sessenta anos desde o seu lançamento, em inícios de 1964, comemora-se neste começo de ano.
A princípio, todavia, é necessário que se coloque a obra-prima de Glauber Rocha no conjunto das produções cinematográficas do que se convencionou chamar de Cinema Novo, cujo domínio histórico, como ocorreu ao Neorrealismo italiano e à Nouvelle Vague francesa, seria relativamente curto: uma primeira fase de 1960 a 1964; uma segunda fase de 1964 a 1968, e uma terceira e última fase de 1968 a 1972, aproximadamente.
Mas, concisamente e em termos claros, o que propunha o Cinema Novo? Em que circunstâncias foi gerado? Que cineastas estiveram diretamente ligados ao movimento? O que teria motivado o seu surgimento?
A primeira manifestação desse sentimento estético, ainda de forma embrionária, e já dialética, deve-se associar ao I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro, em 1952, quando cineastas e candidatos a cineastas levaram a efeito uma discussão sobre a realidade do cinema brasileiro, suas dificuldades, falta de incentivo, inexistência de recursos e incômoda falta de originalidade, quase sempre limitado aos padrões formais do cinema norte-americano. À essa altura, é inegável que, ao propor uma revisão do incipiente cinema brasileiro, esses jovens realizadores teriam se voltado para o Neorrealismo italiano e, em escala maior, para as discussões de que nasceria pouco depois a Nouvelle Vague francesa. Fizeram-no, contudo, não para alimentar as influências sofridas, à essa altura, inegáveis, mas para tomá-las como referências de estéticas a serem superadas quase na mesma proporção da narrativa norte-americana.
Três anos depois, em 1955, portanto, Nelson Pereira dos Santos lançaria aquele que se pode considerar o primeiro filme do Cinema Novo, o inquietante “Rio 40 graus”. Construído em bases estéticas simples, numa narrativa estranha para os padrões dominantes, com personagens extraídos da periferia da cidade grande, o filme expõe as contradições de uma sociedade desigual e profundamente injusta. Esse, pois, seria o pontapé inicial de uma sequência significativa de filmes identificados com o espírito cinemanovista, com destaque para “Vidas Secas” (1963), Nelson Pereira dos Santos, “Os Fuzis” (1963), Ruy Guerra, e “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), Glauber Rocha.
Vê-se, com efeito, mesmo num recorte assim rápido e conciso, que o Cinema Novo transita entre duas regiões, na linha do que propõe Luís Augusto Fischer a partir do processo formador da literatura brasileira. Com a vantagem, ressalte-se, de ser o filme de Glauber aqui focalizado, uma consciente busca de unificação de polos profundamente desiguais, de que a sequência final de “Deus e o diabo” é a metáfora mais cristalina. Utopia ou licença poética? Talvez uma e outra. Mas tudo, é necessário frisar, a exemplo do que veremos adiante, realizado sem jamais perder de vista a problemática do subdesenvolvimento nacional (tema tão caro a Glauber Rocha), ressaltada na presença marcante de personagens tirados da zona rural ou da periferia dos grandes centros, invariavelmente submetidos às miseráveis regras do capitalismo mais primitivo, em diferentes níveis e dimensões.
O próprio Glauber, em seu primeiro longa-metragem, “Barravento” (1962), já ambientara o enredo no litoral baiano, focalizando, com uma estética original e autenticamente brasileira, a dura realidade dos pescadores e suas famílias no litoral baiano, a “plantation” de que nos fala Fischer no seu livro notável.
Em “Deus e o diabo na terra do sol”, Glauber Rocha vai trabalhar sua câmera e produzir imagens estonteantes a partir da memória cultural nordestina, palmilhando o espaço árido e improdutivo de sua geografia a um só tempo bela e profundamente desumana. É nesse cenário tensamente dialetizado, numa luz de alto contraste, onde se cruzam a ingenuidade inata de um povo e a mais abjeta violência de um modelo social injusto, pelo qual transitam as personagens do filme, também ele, intencionalmente violento como forma de expressão artística. Importante lembrar que Glauber traçara as linhas gerais de sua estética a partir da fome e da violência como elementos centrais de sua cinematografia. Ali, a religiosidade utópica do Beato Sebastião, alusão a um certo Antonio Conselheiro, líder do arraial de Canudos; aqui, a força bruta do cangaço como forma de resistência à miséria do país durante o Estado Novo. Alternam-se na cinematografia nacional, a exemplo do que se observa na literatura, o processo de formação examinado por Luís Augusto Fischer: a “plantation” e o “sertão”, antagonismo exemplarmente metaforizado no plano-sequência final de “Deus e o diabo”, como a confirmar a prédica do Beato Sebastião. Num travelling desconcertante e carregado de simbolismo, a câmera de Glauber, tendo como fundo a música de Sergio Ricardo (a letra de Glauber tem como estribilho “o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”) acompanha a corrida insana de Manuel, da terra calcinada e infértil, para as águas do oceano Atlântico. A poesia cinematográfica de um gênio atingindo níveis poucas vezes verificado na história do cinema brasileiro, numa citação assumida de “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, 1959), primeiro longa-metragem de François Truffaut, e verdadeiro ícone da Nouvelle Vague francesa.
A essa altura, é oportuno que se diga ser o mar um elemento semiótico recorrente na filmografia de Glauber Rocha: na abertura de “Terra e transe” (1967), por exemplo, agora pelo viés pós-utópico, contrário ao caráter simbólico-revolucionário do filme anterior, a câmera registra demoradamente um mar exuberante, prateado, a um tempo belo e ameaçador, até apresentar em plano aproximado o nome “Eldorado” e os espaços prostituídos de uma festa burguesa regada a sexo e delírio. Sob o som extradiegético do jazz, que se confunde com vozes incompreensíveis, o líder populista Vieira (José Lewgoy) prepara o discurso de renúncia. Como numa continuidade de “Deus e o diabo”, o plano-sequência de abertura do filme sugere a desconstrução da utopia glauberiana, como a revelar as ciclotomias do pensamento crítico do autor, figura central de um debate, ainda presente nos dias atuais, no contexto de um país dividido, em torno da coerência ideológica entre os grandes artistas brasileiros. Sob este aspecto, o próprio Glauber viria a declarar: “a obsessão fundamental do sertanejo é ver o mar […] eu peguei o símbolo e usei isso dentro do filme”. Na contramão da utopia da sequência final de “Deus e o diabo na terra do sol”, o discurso fílmico pós-utópico de “Terra em transe” realiza um movimento ideológico que expõe as incertezas de Glauber Rocha sobre o futuro do país, suas contradições e a desiludida interpretação do nosso destino como nação.
A genealogia glauberiana do mar, cujas raízes remontam a Peixoto e Humberto Mauro, tornar-se-ia recorrente em filmes brasileiros a partir de então. Mas isso demanda um outro estudo e vai além dos objetivos perseguidos neste artigo, bem como da extensão que me foi proposta para o mesmo.
Como a confirmar a tese defendida por Luís Augusto Fischer, na perspectiva da literatura, é possível concluir que a mesma dicotomia – mar-sertão – pode ser identificada no cinema brasileiro dos anos 50 e 60, num momento histórico em que se manifestam as diretrizes estéticas fundadoras da nacionalidade cinematográfica no Brasil. Isso não significa dizer, no entanto, que se fechem olhos para o que houve de mais significativo antes disso: Mário Peixoto, Humberto Mauro e Alberto Cavalcanti, sob diferentes aspectos e em medidas diversas, não podem ser ignorados. A vocação poética do primeiro, por exemplo, terá exercido grande influência sobre a concepção narrativa de Glauber, o que, com maior atenção, se pode ver no incontornável “Deus e o diabo na terra do sol”, obra de que trataremos sucintamente no comentário que se segue.
Deus e o diabo na terra do sol
Sessenta anos desde o seu lançamento, uma das obras-primas do Cinema Novo (re)insere-se no grande debate sobre o Brasil cindido, como a renascer das cinzas para lançar luz sobre as relações de dominação do homem pelo homem, o fundamentalismo religioso como fator de doutrinação social e política e o surgimento de “mitos salvadores”, bem na linha do que se vê hoje no Brasil e alguns outros países do Hemisfério Sul.
Assentado em bases teóricas professadas em livro clássico sobre a cinematografia nacional, “Revisão crítica do cinema brasileiro”, 1963, do próprio Glauber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol” logo se tornaria uma espécie de marca do chamado Cinema Novo, quer pela denúncia dos problemas sociais e políticos do país, uma de suas características mais relevantes do ponto de vista “semântico”, quer pela estética fílmica propriamente dita: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, como apregoavam seus realizadores mais representativos, tornar-se-ia um dos slogans da nova estética.
A arte suscitando o debate em torno de nossas mais dolorosas contradições, era este o objetivo a ser perseguido no que Glauber Rocha definiria como a “estética da fome”. A teoria, todavia, há que ser vista em sua íntima dualidade: a fome e a miséria abordadas com os parcos recursos do cinema nacional. Numa palavra: uma cinematografia desprovida de qualquer sofisticação formal, sem prejuízo de sua beleza visual descarnada e cortante, que desse a ver as raízes das desigualdades e suas consequências no modo de vida de segmentos numerosos da sociedade.
Aqui faço um parêntese para recomendar a leitura (ou releitura) do incontornável livro de Ismail Xavier, “Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome”, em que se examina amiúde e exemplarmente bem a política de um estilo, o caráter histórico dos elementos formais da cinematografia glauberiana e o sentido político de sua mise-en-scène.
Não sem razão, pois, é que esse jeito de fazer cinema a partir de recursos mínimos, resultaria num tipo de estética fílmica aparentemente desleixada: imagem trêmula, enquadramentos transgressores, iluminação precária (não raro com a luz estourada, como em “Vidas Secas” e no próprio “Deus e o diabo”), entre outros procedimentos estranhos às estratégias narrativas do cinema clássico, são escolhas conscientes dos cineastas do Cinema Novo, e a isso, contraditoriamente, se deve em grande medida a boa acolhida, lá fora, dos filmes por eles produzidos.
Sob este aspecto, por oportuno, é de Glauber Rocha, visando a explicar a vocação estética de sua cinematografia, o seguinte comentário: “Nós compreendemos essa fome que o europeu e o brasileiro em sua maioria não entende (sic). Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional […] Sabemos nós – que fizemos esses filmes feios e tristes, esses filmes gritados e desesperados em que nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelo planejamento de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente; e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”.
Urge ressaltar, no entanto, que “Deus e o diabo na terra do sol”, em que pese a sua reconhecida originalidade em termos estilísticos e formais, fincara suas balizas estéticas no regionalismo literário dos anos 1930, a chamada segunda fase do modernismo brasileiro, dentro de cujos limites figuravam nomes de peso, a exemplo de Graciliano Ramos e José Lins do Rego, para ficar em dois de seus maiores representantes. O romance “Cangaceiros”(1956), do escritor paraibano, era exaltado por Glauber Rocha como obra de aguçada compreensão da realidade nordestina, bem como o livro-monumento de Euclides da Cunha, “Os Sertões” (1902), em que avulta a figura messiânica de Antonio Conselheiro — no filme, o Beato Sebastião, e sua profética inversão da ordem natural do mundo: “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”.
Bem arquitetado, no entanto, em sua intrincada tessitura dramática, “Deus e o diabo…” revela o doloroso processo de sociabilização do país, tendo como cenário o sertão nordestino, a terra calcinada e infértil por onde se espraia a quase indizível miséria e realidade de um povo. É desse ambiente de profunda desolação que Glauber Rocha extrai a matéria com que realiza esta verdadeira obra-prima, ombreando-se ao Lima Barreto do aclamado “O cangaceiro” (1953) dos tempos da Vera Cruz. Raras vezes, como destacou Laurent Dubois, “a folia antropomórfica dos elementos encolerizados contra o humano será representada na tela de maneira tão intensa e bela”.
Não à toa, pois, é que seu nome ganharia dimensão internacional, e seu filme acolhido na Europa como exemplo de um novo cinema, isento da influência quase incontornável de um fazer cinematográfico sofisticado e banal, a exemplo de certa porção das produções hollywoodianas de que nem mesmo a Nouvelle Vague, de François Truffaut e Godard, fora capaz de libertar-se por completo. Isto, por si só, é suficiente para dar aos amantes da sétima arte — e a uma crítica servil aos interesses do capitalismo –, uma ideia do que representa para o Brasil, em termos culturais e artísticos, “Deus e o diabo na terra do sol”.
Narrativa épica ainda insuperada em qualidades estéticas, o agora sexagenário filme de Glauber Rocha pode ser revisto em plataformas do streaming (Globoplay, por exemplo), ofertando-se aos olhos do cinéfilo brasileiro como instrumento de reflexão sobre um país marcado por antagonismos aparentemente insuperáveis, e, coisa impensável para os tempos pós-modernos, ainda em grande parte doutrinado pelo ódio, pela violência, pelo fanatismo e inqualificável cegueira intelectual e política.
Ficha técnica
Ano de produção 1964. Duração: 125 minutos. Direção: Glauber Rocha. Produção: Luiz Augusto Mendes, Jarbas Barbosa, Glauber Rocha. Roteiro: Glauber Rocha, Walter Lima Jr. Fotografia: Waldemar Lima. Montagem: Glauber Rocha, Rafael Justo Valverde. Trilha sonora: Sérgio Ricardo, Glauber Rocha. Direção de arte: Paulo Gil Soares. Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos, Maurício do Valle, Lídio Silva.
Nota sobre os textos referidos
Duas formações, das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio. De Luís Augusto Fischer, Porto Alegre, Editora Arquipélago, 2021.
Mar Sertão: Glauber Rocha e a estética da fome. De Ismail Xavier, São Paulo, Duas Cidades Editora 34, 2019.
Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. De Antonio Candido, Belo Horizonte, Itatiaia, 1975.
As ideias fora do lugar. De Roberto Schwarz, em Roberto Schwarz Essencial, São Paulo, Editora Penguin-Companhia das Letras, 2023.
A odisseia do cinema brasileiro. De Laurent Dubois, São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
Revolução do Cinema Novo. De Glauber Rocha, São Paulo, Cosac-Naify, 2004.
A utopia no cinema brasileiro. De Lúcia Nagib, São Paulo, Cosac-Naify, 2006.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
0 comentários