Devaneios Mitológicos III Lethe: flumen pacis

10/12/2022

A dimensão post-mortem foi significativamente representada pela Mitologia Clássica. Inferi, as regiões inferiores. O Reino de Plutão e de Prosérpina. Os castigos e as recompensas dados aos mortais.

Muito antes de Dante, na Divina Comédia, ter detalhadamente traçado a geografia do Além (Inferno-Purgatório-Paraíso), a Antiguidade já conhecia os meandros do reino infernal. Uma vasta dimensão na qual havia lugares aprazíveis para os bem-aventurados e lugares terríficos para os condenados.

Curiosamente, o Hades era perpassado por muitos rios. A maioria de natureza nefasta, torturante. O Cócito, o Styx, O Flégeton, o Aqueronte. No entanto um deles, o Letes, era intrigantemente um rio da paz para a alma: Flumen pacis animae.

O Letes é descrito pelos poetas como um rio de águas calmas, caudalosas. Segundo a crença antiga da Metempsicose, as almas nele mergulhavam para esquecer das vidas anteriores e tomar novos corpos. Apenas leves reminiscências restavam na turva memória dos que reencarnavam.

A pintura e a escultura fixaram os contornos do rio Letes como um velho segurando uma concha, símbolo dos rios, e a Taça do Esquecimento.

Mas por que esquecer? É razoável pensar que devamos olvidar tristes lembranças antes de voltarmos à prisão do corpo. Porém creio que deveríamos guardar as boas memórias. A cara família, os amores, os lugares amados, os livros que lemos… Não me parece justo esquecer tudo isso.

Olvidar pode ser um bálsamo. O rio Letes pode efetivamente ser o rio da paz para o Ser. Não estavam felizes os companheiros de Ulisses com a flor do Lótus esquecendo-se de todos os males da jornada?

O inexorável poder dos Numina nos obrigará a tudo esquecer. Seremos forçados a mergulhar nesta poderosa água. Aprazível será não mais lembrar das muitas tristezas passadas. Entretanto, penoso será esquecer dos bons tempos, dos grandes amores, dos risos…. E, sobretudo, doloroso demais será voltar ao cárcere da matéria e à nova sentença da morte!

 

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

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