DEVANEIOS VERNACULARES XVIII A TEORIA DA ELIPSE

01/08/2020

Avivando o juízo ao doce estudo, Mais certo manjar de alma, enfim, que tudo”Camões

Nós conhecemos a elipse como uma notória figura de sintaxe. Consiste em omitir uma ou mais palavras da oração, mas que ficam subentendidas. E.g: “No mar tanta tormenta e tanto dano.” Neste decassílabo camoniano o autor não escreveu – mas o detectamos – a forma verbal “há” do presente do indicativo do verbo haver.

No entanto, sob certo ângulo teórico, a elipse expandiu os seus domínios para muito além do universo da Estilística. Estudos na Antiguidade (sábios de Alexandria), na Grécia e em Roma vincularam a elipse, e a própria Gramática in tota, à Lógica e à Filosofia. Na Idade Média o preclaro gramático A. Sanchez, da Universidade de Salamanca, desenvolveu um complexo raciocínio sobre tal figura a partir de um verso de Terentius. Vel me monere hoc, vel percontari, puta. Rectum est, ego ut faciam, non ut deterream.O enunciado poderia conter – me Hercule! até setenta elipses.

À parte os exageros, se considerarmos a elipse com tal abrangência poderemos solucionar casos complexos de análise sintática. Exempla habemus😮 enunciado “é-me impossível” (tópico do nosso Devaneios Vernaculares XVII), o qual traria a impessoalidade do anômalo verbo ser com a consequente ausência de sujeito. O termo “impossível” fica então completamente desprovido de classificação sintática, pois se não há sujeito, como pensar em um predicativo do sujeito? Com a elipse isto se resolve. Literalmente: “isto”, o pronome demonstrativo, é o sujeito omitido. O verbo, claro, torna-se pessoal e lidimamente copulativo. O adjetivo “impossível” é visivelmente predicativo do sujeito “isto”.

A Teoria da Elipse pode, inclusive, solucionar um incômodo processo sintático: a oração sem sujeito. Incômodo porque fere o raciocínio lógico a ideia de uma ação, relação ou paixão verbal sem um sujeito. Verba sunt: actionis, relationis, passionis.Os verbos são de ação, de relação (os copulativos-neutros) e os de sentimento. Todos devem na oração corresponder a um sujeito. Segundo a Gramática, há dois modos de a oração não apresentar um sujeito. Verbos representando fenômenos naturais e os verbos haver e fazer dando ideia de tempo.

Quisquem videmus:de acordo com esta teoria, os verbos representativos de fenômenos da natureza têm, sim, sujeito. Embora elípticos, vêm marcados desinencialmente e conjugados na terceira pessoa do singular. Sic exempla:chove, troveja, amanhece. Os sujeitos são: a chuva, o trovão e o dia. Inclusive, para o primeiro verbo, em inglês e em francês aparece o pronome pessoal nas expressões: it rains e il pleut. Tal pronome, neutro no estágio atual dessas línguas, tem como resquício a forma pessoal do sujeito antigo latino: Iupiter pluvius. (Júpiter chuvoso). Ou seja, Iupiter pluit:Júpiter chove.

A segunda ocorrência é um pouco mais mirabolante, porém não menos patente em relação à presença elíptica. Nos seguintes exemplos: “havia dois anos” e “fazia dois anos”, segundo a Gramática, não há sujeito. Para esta teoria há sim. Nas duas frases o sujeito é o elíptico substantivo “tempo”. Expliquemos. O verbo haver vem do latim habere, cujo sentido era “ter”, “possuir” (este verbo pode ainda ser conjugado com este sentido). O português arcaico usava esta acepção: “eu hei mister”. Nos dois casos os verbos estão flexionados porque há um sujeito, embora elíptico. O tempo “há”, o tempo “tem” dois anos. No segundo caso o verbo fazer, também flexionado, traz a semântica de “agir”, também associada ao sujeito “o tempo”. O tempo “age”, o tempo “faz” dois anos.

Diria o preclaro Cícero: Mirabile videtur! Coisa admirável de se ver. Ou melhor, diríamos, de não se ver. Embora esteja na frase. A Teoria da Elipse não vem negar princípios sacros da Normativa Gramática. Com efeito, ela enaltece-a, na medida em que nos leva a pensar logicamente. Gramática, bom leitor, é filosofia.

Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)

MAIS Notícias
DEVANEIOS MITOLÓGICOS I EROS PRIMORDIAL
DEVANEIOS MITOLÓGICOS I EROS PRIMORDIAL

  (....) Non nobis, Domine, non nobis...   Quando me detenho a refletir sobre a relação entre o homem e a Divindade, não procuro eco ou lenitivo na obra de Homero. O bardo dos primórdios da Hélade (supondo que tenha havido realmente um só Homero) nos fala sobre deuses...

DEVANEIOS MITOLÓGICOS I EROS PRIMORDIAL
DEVANEIOS MITOLÓGICOS I EROS PRIMORDIAL

    Quando me detenho a refletir sobre a relação entre o homem e a Divindade, não procuro eco ou lenitivo na obra de Homero. O bardo dos primórdios da Hélade (supondo que tenha havido realmente um só Homero) nos fala sobre deuses volúveis, movidos por caprichos e...

Christina Rossetti
Christina Rossetti

“Even so my lady stood at gaze and smiled...” Dante Gabriel Rossetti   Christina Georgina Rossetti (1830-1894) foi uma das máximas ladies da honorável Victorian Poetry. Ricamente educada desde a infância, sabia grego, latim, várias literaturas e era profundamente...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *