Duas palavras sobre Aderbal

12/08/2023

No final dos anos setenta, Cleide Quixadá e eu montamos o espetáculo “Aquela Garota dos Olhos Grandes”, de Rubem Rocha Filho. O texto nos chegara às mãos pelo ator e diretor de teatro Marcos Miranda – uma cópia amarfanhada, com riscos de marcação, comentários, acréscimos de rubrica, feitos à mão, à margem da folha, o que de alguma forma nos ajudou a conceber o espetáculo. Eram anotações referentes à montagem anterior da mesma peça, em Fortaleza. A letra, observara Miranda, era do ator e diretor Aderbal Jr., como era conhecido até então aquele que logo tornar-se-ia um dos maiores nomes do teatro brasileiro de todos os tempos: Aderbal Freire-Filho.

Muitos anos depois, no Rio de Janeiro, contei essa história ao próprio Aderbal, agradecendo-lhe por sua “contribuição” para o nosso trabalho. Aderbal, entre risos – e o gesto costumeiro de assanhar os cabelos brancos com as mãos ao falar – brincou: “Então você foi dirigido por mim!?”

Era março de 2015. Estávamos na ocasião, Ticiana (minha mulher à época), Beta Fiuza, seu marido e primo de Aderbal, César Rossas, a atriz Luciana Belchior, filha do César, e eu. Tínhamos acabado de assistir ao premiadíssimo espetáculo “Incêndios”, com Marieta Severo em atuação soberba. Aderbal, como combinado, aguardava-nos no hall de entrada do teatro, desmanchando-se em simpatia e generosidade, algumas das marcas mais notáveis de seu caráter irretocável. A mais impressionante, era a sua humildade: “A Marieta está se trocando e chega já”, dizia-nos referindo-se à atriz Marieta Severo, sua mulher, que logo se somaria ao grupo, elegante e bela.

Nutri sempre por Aderbal Freire-Filho mais que uma simples admiração, coisa de resto natural para quem, como eu, lida com a arte profissionalmente, e reconhecia nele os atributos que o levaram desde muito cedo à consagração como um artista fora da curva. Dedicava à pessoa do Aderbal um carinho imenso, em grande parte devido à minha proximidade com o César Rossas, primo a quem Aderbal tratava invariavelmente como um irmão, na mesma linha do que fez sempre em relação à escritora Angela Gutierrez, a quem, durante a conversa, Aderbal fez referência de tal modo afetuosa que logo pude entender: mais que à prima-irmã, havia nele, para com Angela, uma admiração enorme pela escritora e pela mulher.

A morte de Aderbal Freire-Filho, ocorrida nessa quarta-feira, no Rio de Janeiro, encerra a trajetória de um artista para o qual o reconhecimento se deu em vida, felizmente. Não é muito dizer, contudo, em relação ao artista, o mesmo que se pode afirmar em relação à pessoa humana: Aderbal era uma unanimidade, uma das poucas unanimidades de que se tem notícia num mundo de “homens partidos”, valendo-me aqui da conhecida expressão do poeta Carlos Drummond de Andrade para dizer de um tempo escasso de grandes valores humanos.

Na Academia Cearense de Cinema, honra-me ocupar a cadeira de Aderbal Freire (o pai), de cujo talento intelectual vem o DNA desse grande homem e grande artista, morto ao final de dolorosa luta, desde que um AVC hemorrágico o tirou da mais elevada cena artística brasileira.

Assisti a muitas peças dirigidas por ele. Não vou insistir, no entanto, por desnecessário, naquilo que todo mundo sabe sobre Aderbal Freire-Filho: como homem de teatro, figurará no Brasil entre os maiores de todos os tempos, gente da envergadura de Zbignew Ziembinski, Augusto Boal, Vianinha, Paulo Pontes, Antunes Filho, José Celso Martinez Corrêa e outros. Com uma diferença, que me permitam a subjetivação: dentre todos, Aderbal foi seguramente o maior.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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