Horácio e Virgílio, os dois maiores poetas latinos, foram grandes amigos. Viveram na Aetas Aurea do latim e da história ocidental, ao tempo do imperador Augusto. Quando da morte de Virgílio, Horácio dedicou-lhe uma ode, na qual parece prever a morte do caro amicus. Neste poema ele o chama de dimidium animae meae. “A metade da minha alma.”
Bonus lector,já tiveste um amigo assim? Eu já. E o perdi. E o não esqueço nem um só dia. Um companheiro de infância. Toda uma vida de experiências, confidências, sinceros sentimentos de um irmão para o outro. Amparo e consolo nos dias tristes. Espelho nas abundantes alegrias. Um parceiro, um cúmplice, uma alma fiel.
Este meu amigo, o velho Airton, a morte o não levou rapidamente. Não há morte boa, mas talvez a rápida seja menos ruim. Com ele foi lentamente; foi doloroso o despedir-se da vida. Sofreu durante cinco anos. Uma doença no coração e depois um câncer de pele. Este último o matou. Eu estive ao seu lado o tempo todo. Eu o vi definhar e partir a cada dia.
O meu amigo foi operado do coração no segundo ano de sua doença. Uma válvula precisava ser trocada. Operação delicada, várias horas e muito risco. Mas foi um sucesso o procedimento. Todavia, na sala de recuperação, sofreu uma parada cardíaca e foi reanimado por quarenta e cinco minutos. O médico, um santo homem, honrou naquele dia o seu diploma. O velho Airton voltou à vida. Recuperou-se, retornou a casa, ficou a tomar remédios e estava bem, na medida do possível. Só um ano depois, quando descobriu um câncer de pele, veio a sucumbir à inexorável Mors.
O evento que vou narrar deu-se logo após o seu retorno para casa. Eu ia visitá-lo diariamente. Preciso dizer que não tínhamos segredos um para o outro. Confiança total; dividíamos tudo. Alegrias, tristezas, aventuras, bebidas, até mesmo uma namorada, certa vez, chegamos a compartilhar. Então ocorreu-me indagar-lhe – eu estava curiosíssimo – o que ele tinha sentido, tinha vivido ou visto durante aqueles quarenta e cinco minutos nos quais esteve entre a vida e a morte. E perguntei-lhe:
– Velho amigo, viste alguma coisa? Viste a Luz? Existe algo além?
– Não vi nada. (disse-me calmamente). Foi como dormir e acordar.
Eu ouvi e tive que disfarçar meu desapontamento. Sou católico por formação e por tradição. Minha mãe era da Legião de Maria. Creio em Deus e em Nossa Senhora, mas, infelizmente, minha fé precisa da Razão. Eu queria ouvir uma prova. A palavra dele seria a minha certeza na continuidade, seja lá como fosse, da vida. Eu seria e não a morte. Lembro que saí de lá triste e preocupado. Dormir e não mais acordar. Morrer de todo e para tudo. Seria só isso? E a Luz?
Foi então que um pensamento surgiu para mim como um pássaro que entrasse subitamente através de uma janela. Como um gol do seu time no último instante da prorrogação. Ou como a chegada da mulher amada quando sua vinda foi dada por perdida. O velho Airton gostava de pregar peças. Gostava de surpresas. Às vezes, por brincadeira, dizia as coisas pela metade; escondia o jogo; não dizia, embora soubesse, o final. Tinha humor, era um brincalhão.
Então agora, quase um ano depois de sua morte, cultivando as mesmas lembranças e o mesmo amor por ele, vim a pensar: ele estava brincando. Queria fazer-me mais uma surpresa. A Surpresa! Não queria estragar tudo contando-me logo. Contando o que sentira e vira. A Luz! A Luz! A Luz!
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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