“Honesta mors turpi vita potior”
Tacitus
Liberté! Égalité! Fraternité! Pouquíssimas vezes na História tanto sangue inocente foi derramado em nome de tão belas palavras. A Revolução Francesa foi uma carnificina inútil. A Nobreza foi praticamente dizimada. O Clero, aviltado. Ignorantes radicais cheios de ódio cometeram todo tipo de crimes e violações.
Entre tantos, e não menos lastimável, houve o estranho caso da Marquesa de Vertuille. Uma dama refinada, intelectual, que mantinha um salão literário em sua rica propriedade nos arredores de Paris. Le Grand Monde da sociedade reunia-se todas as sextas-feiras para ouvir boa música, para recitar, para o teatro. Almas de elite, aristocracia de espírito que a barbárie levou à morte pela guilhotina.
Os primeiros meses da matança foram os piores. Hordas selvagens iam às mansões, aos prédios públicos para realizar saques, para arrastar inocentes à execução. Um frenesi diabólico de sangue sem qualquer justificativa. Quanta nobreza, quanta arte se perdeu!
As velhas Crônicas relatam sobre a firmeza de alma da velha Marquesa. Era poetisa, organizava finos saraus em sua bela residência. Nos tempos finais, quando já a selvageria imperava, poucos frequentavam as noites de sexta, as requintadas noites de Beleza!
Paris estava em chamas. Reinava o caos. As propriedades campesinas foram as últimas vítimas dos loucos revolucionários. Os saraus da Marquesa resistiram heroicamente. Mas o medo foi levando os frequentadores. Muitos conseguiram se exilar, escapar do Inferno. Mas a maioria foi inocentemente massacrada.
Robert de Lyon, no tomo IV de suas Histoires, narra a insólita última sexta-feira de poesia do refinado grupo. Apenas um quarteto. O Visconde e a Viscondessa de Auby; o Marquês e a Marquesa. Todos idosos, já passados dos sessenta anos. Mas ágeis, vivos de espírito. Os fatos foram presenciados e depois repassados ao cronista Robert pelo velho criado da mansão, Monseigneur Legrand. Um velho também. O único que ficou na casa.
Pouco depois das quatro da tarde, Legrand, apavorado, adentrou o salão das reuniões avisando que a turba ignara e odiosa estava a caminho da mansão para levar os nobres à prisão e certamente à morte.
As velas dos candelabros já luziam, a mesa já ricamente posta, o piano aberto. Taças e garrafas de capitosos vinhos jaziam sobre as douradas toalhas. No centro do salão, diante do olhar de quem adentrasse pela porta principal, o imenso quadro representando a Marquesa em seus suntuosos trajes. Fora pintado quando ela era mais jovem. A moldura em ouro contrastando com o preto do vestido e as sombras de uma paisagem noturna. Uma tela admirável.
– Façamos nossa noite como sempre fizemos. Disse a marquesa para os três outros que a olharam atônitos depois do anúncio dito pelo criado.
– Mesmo que quiséssemos – replicou o Visconde – não conseguiríamos mais fugir. Fiquemos e vivamos en plaisir nossos momentos finais.
– Também não temo a Velha Inexorável ! Fiquemos. Disse o Marquês.
– Bebamos vinho até o final. Concluiu a Viscondessa.
Dizer que não se teme a morte não é o mesmo que não temê-la. A coragem dos convivas da Marquesa não resistiu ao medo quando a horda dos invasores ameaçou os portais da mansão. Gritos infernais preludiavam o sangue que em breve seria derramado.
Conta ainda o historiador Robert de Lyon que o Marquês, o Visconde e a Viscondessa correram espavoridos. Tentaram a todo custo se esconder. Foram aprisionados e executados naquela mesma noite. O velho criado foi poupado, afinal fazia parte do “povo”. M. Legrand foi a última pessoa que viu a impassível e heroica Marquesa levantar-se, sem medo algum, e seguir rumo ao enorme corredor da mansão. Foram os últimos olhos que a viram.
A altiva Marquesa de Vertuille jamais foi encontrada. Não foi presa. Nunca houve registro de sua execução. Como poderia fugir?
A mansão ainda está lá, mesmo nestes terríveis e insípidos tempos. A estrutura e a mobília foram mantidas quase intactas, como um museu. Mas que destino – é imperioso indagar – teve a Marquesa?
Há quem jure, há quem devotamente acredite que ao olharmos para o velho quadro do salão sentimos que Ela está nele, dentro dele, de alguma forma está imortalizada ali! A Marquesa, livre para sempre dos insultosos, ferozes e ridículos revolucionários!!!
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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