Eis a [velha] questão

04/10/2024

A semana que termina marca também o final da mais abjeta campanha política de que se tem notícia. Em São Paulo, mais importante cidade do país, durante debate em que se devia apresentar propostas de governo, discutir problemas da população e apontar alternativas de ação para o novo quadriênio, o que se viu foi um festival de baixarias que culminaram com cadeiradas e rostos ensanguentados.

Em Alagoas, mais precisamente no município de Taguarana, um juiz eleitoral teve de suspender a campanha sob a alegação de que a “agressividade exagerada” tomava rumos trágicos, num cenário em que “o uso de armas de fogo” ocupava o lugar dos cartazes e santinhos das campanhas tradicionais.

O baixo nível das campanhas espalhou-se pelo país inteiro, confundindo os eleitores e mostrando a face deformada do que, em sua verdadeira razão de ser, é a política, a arte ou ciência de governar, de liderar, de apontar caminhos.

Nunca, em tempo algum, se pôde assistir à vulgarização, à leviandade, à deselegância, à desfaçatez em níveis tão elevados, numa inversão de valores que reflete a realidade hodierna de um país submetido à sanha e à insensatez, ambiente propício para o surgimento de aventureiros e salvadores da pátria movidos a ódio e a hipocrisia.

Em Fortaleza, cidade tradicionalmente progressista, corre-se o risco de ter-se um segundo turno com candidatos de extrema direita, afeitos à disseminação de ideias medievais, pautadas num fascismo redivivo que submete uma parte significativa do país ao que existe de mais retrógrado e mais perverso do ponto de vista humano.

Não isentos de responsabilidade em face do que se vê, partidos de esquerda ignoram suas cartilhas e seu ideário com olhos nas vantagens, muitas vezes inconfessáveis, advindas do poder.

Maior e mais importante desses partidos, o PT vira as costas para o povo e entra desavergonhadamente no jogo de conchavos e práticas até ontem condenadas. Pretere quadros históricos em favor de nomes sob qualquer aspecto identificados com seu projeto de governo, antevendo negócios e negociatas, conluios e falcatruas, num descaso assumido para com a história do partido e do seu mais ilustre representante, o atual presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

Em Iguatu, para mirar um exemplo, tenta-se a custo vender-se gato por lebre, e o antigo veste-se de novo para tentar voltar ao poder sob o manto vermelho em que cuspia até bem pouco tempo, conspurcando a estrela branca que acalentou sonhos, utopias e ideais.

Em um dos sete solilóquios de Hamlet, na peça de mesmo nome, o leitor depara-se com uma das mais profundas reflexões em torno de como agir ou reagir diante do infortúnio: “To be, or not to be, that is the question”.

Às vésperas do mais sublime exercício democrático, aquele em que escolhe seus legítimos representantes, como um Hamlet destes tempos sombrios, o eleitor brasileiro se perde em meio ao mar de lama que se descortina à sua frente: “O que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes?”.

Ser ou não ser, eis a [velha] questão.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

MAIS Notícias
A política e a politicagem
A política e a politicagem

Fiz oito anos na antevéspera do golpe de Estado de 64. Àquela época, os jornais não circulavam nas cidades do interior, não havia tevê e as notícias chegavam até nós através do rádio. Como morássemos ao lado de Aluísio Filgueiras, velho comunista, num tempo em que ser...

DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES
DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES

  Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música “Paralelas”, para a qual diz ter escrito outro final, já...

A bossa nova e outras bossas
A bossa nova e outras bossas

A Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou na semana que termina um projeto de lei que "torna" a bossa nova patrimônio cultural da cidade. Mera formalização do que já era uma realidade. Nascida no Rio, onde residiram seus mais legítimos representantes, a bossa...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *