Eles passarão!

21/05/2022

Todos esses que aí estão

Atravancando meu caminho,

Eles passarão…

Eu passarinho.

Quando citei o “Poeminho do Contra” (assim, no masculino, como no original) de Mário Quintana, a propósito de manifestar minha indignação contra a exoneração do radialista Nonato Lima, da direção da Rádio Universitária FM, inúmeros leitores se manifestaram como a fazer uma elegante correção ao que pensavam um erro de minha parte.

Refiro-me ao penúltimo verso do poema, “eles passarão”, que esses leitores acreditavam tratar-se de uma alusão ao grito de guerra dos revolucionários espanhóis contra o fascismo do generalíssimo Franco. Ledo engano, posto que o poeta não teve essa intenção, o que se pode concluir pela inexistência do advérbio de negação no texto hoje recorrentemente citado, a exemplo do que fiz em referência ao ato de perseguição do atual reitor da UFC – e seus asseclas – ao respeitado profissional de imprensa.

O poema de Mário Quintana está, no entanto, eivado de conteúdo político, muito embora, como era próprio do poeta gaúcho, o tenha feito com a sutileza de um artista profundamente sensível e delicado.

Tento aqui, em palavras ligeiras, fazer uma exegese do maravilhoso poema à luz de suas ambiguidades e forças de significação, como, claro, era minha intenção ao citá-lo nas palavras de apoio a Nonato Lima.

O poema foi escrito nos áureos tempos da ditadura militar implantada no país com o golpe de 1964. Considerando-se que imperava à época uma censura atroz contra a liberdade de expressão, nomeadamente sobre os artistas brasileiros, Quintana fez valer a sua extraordinária capacidade criativa para protestar contra os militares sem que precisasse mencioná-los no seu belíssimo texto: “Eles passarão”, explorando a ambivalência semântica do vocábulo “passarão”, que pode sugerir tão-somente um pássaro grande, o substantivo, assim, usado no aumentativo em oposição ao “Eu passarinho” do último verso, diminutivo, metaforizando o ser frágil e sem poder submetido a uma correlação de forças desigual e injusta; mas não derrotista, como o próprio título do poema deixa claro pela presença da preposição “contra”, isto é, ‘contrariamente a’, ‘em embate com’, na linha do Quixote contra os moinhos de vento que está em Cervantes.

Assim, é importante atentar para o primeiro verso, elucidativo daquilo que incomoda o eu-lírico, o ser ficcional, ou seja, “aqueles que estão atravancando o seu caminho”. O ato é heroico, exemplar, pois o ser em desvantagem se insurge contra o inimigo coletivo (“Esses que estão”).

Não fica afastada, porém, a possibilidade de uma interpretação menos politizada e mais geral, sendo a forma substantivada “esses” uma alusão aos diferentes obstáculos, a pedra do caminho a que se referiu Drummond em poema já muito explorado do seu primeiro livro.

Mas, voltando aos dois últimos versos, os substantivos “passarão” e “passarinho” devem ser compreendidos como flexões do verbo “passar” (no futuro do presente) e “passarinhar” (no presente do indicativo) no sentido, respectivamente, de ir embora, não deixar marcas, e de fazer como os pequenos pássaros que voam o voo da plena liberdade.

A força do poema, como é próprio da linguagem poética segundo a teoria clássica de Roman Jacobson, está nas muitas sugestões ou sentidos que o texto assume, o que permite múltiplas interpretações.

Todos esses sentidos, contudo, remetem a uma mensagem positiva: os problemas são efêmeros e serão superados, assim como os poderosos, cobertos de poder, os ditadores, inimigos da liberdade, serão um dia vencidos pelo passarinhar dos homens livres.

Com uma estrutura formal extremamente simples, a quadra, construída a partir de um esquema de rimas cruzadas ou alternadas (A-B-A-B), o primeiro verso com o terceiro, o segundo com o quarto, o eu-lírico se dirige ao leitor comum (e ao especialista, se for o caso), lançando mão de um léxico popular que dá ao conjunto poemático o tom da límpida oralidade, uma das marcas da poesia ao mesmo tempo simples e sofisticada de Mário Quintana.

Tudo, é preciso insistir, sem perder de vista a função social da literatura, aquela que se presta a denunciar o lado torto do mundo e dos homens.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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