Em uma Semana Santa

16/04/2022

Estava sozinho. Não havia qualquer vivalma para passar aquela Semana Santa refletindo sobre os ensinamentos de Jesus Cristo. Familiares, amigos, mulher… não havia ninguém para sequer fazer (ou receber) um telefonema. A Bíblia – a Palavra Sagrada – repousava em um velho móvel daquele apartamento vazio. Há muito ele não mais a abria. Já não a consultava. Sua desesperança, aos poucos, fora tomando conta de sua vida, de modo que, quando percebeu, já não parecia reconhecer qualquer possibilidade de retorno à felicidade.

Enquanto fumava um cigarro, olhava para o seu animal de estimação e pensava: “É, Ralf, se o Moreira Campos estiver certo sobre os cães verem as coisas [espirituais], certamente também você, meu amigo de quatro patas, que é um cão, estás a ver o meu espírito em frangalhos”.

Os seus andrajos repousavam em uma cadeira. Estava seminu – de alma e de corpo. Não haveria de por roupa alguma para aquela ocasião de sempre: a da solidão total perante a humanidade. O silêncio, ali, só era quebrado pelos risos oriundos de uma casa contígua, onde comiam e bebiam à vontade. Onde a “cristandade” estava sendo vivenciada, compartilhada no mundo fechado dos que são “os seus”.

Na realidade, ele já não mais era um cristão. Desiludido, não com Cristo, mas com os cristãos. Neles – os cristãos -, havia falta de Cristo. Era, portanto, uma espécie de ateu germinado pela hipocrisia social; pelas convenções sociais e suas mesas cheias e corações vazios; de línguas rápidas para acusar e ouvidos surdos para ouvir o silencio ensurdecedor do irmão que jaz à casa vizinha.

Ele tornara-se um espectro, um ser invisível para o mundo. Um mendigo sem coragem para mendigar o afeto desejado inerentemente por todo homem. Há algo pior do que viver de mendicância sem que, para tanto, haja a mínima coragem para pedir, meu caro amigo? Ele era um pedinte silencioso.

Mas alguém bateu à porta. Ele, com muito custo, vestiu-se e foi atender a quem a batia. Era uma mulher. Uma mulher jovem, bonita e sorridente. Ele logo a reconheceu. Era a famigerada e repudiada meretriz do bairro – dessas que a sociedade não ignora por haver serventia. Qual a serventia? Falar mal. Apontar o dedo. Servir de “exemplo a não seguir”.

— Boa Noite, senhor “L”. Vim lhe desejar uma boa Semana Santa. Trouxe algumas sardinhas, arroz e um pouco de vinho. Bebi a metade ontem à noite. Mas ainda dá para embebedar-se com o que sobrou – ela disse sorrindo.

— Obrigado, minha filha. Não esperava tal consideração da sua parte. Aliás, da parte de ninguém. Fico imensamente feliz em ser visto por alguém. E logo por você que, me perdoe, é tal malfalada – falou sem jeito.

— Somos mais próximos do que o senhor possa imaginar, senhor “L”. Somos o que sobrou dos nobres, da alta sociedade… ainda que eles façam, vez ou outra, coisas muito piores do que as que eu ou o senhor fazemos. Agora deixe-me, como a própria Maria Madalena, lhe lavar os pés com o bálsamo que trouxe comigo. Me perdoa, papai! Me perdoa! – caiu em prantos.

E assim, pai e filha se uniram na graça da Semana Santa. Na paz de Deus. Na reflexão do amor de Cristo. No amor genuíno, que está para além das pregações vãs. Na felicidade real.

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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