No belíssimo filme “Flores Raras” (2013), de Bruno Barreto, há uma sequência carregada de significado político: Elizabeth Bishop ouve rádio no apartamento da arquiteta brasileira (e sua companheira passional) Lota Macedo Soares, quando o noticiário anuncia a eclosão do golpe de Estado de 1964.
A poeta americana levanta-se e vai à janela do apartamento na curiosidade de acompanhar o que acontece na avenida Atlântica, à beira-mar de Copacabana, e o que vê são rapazes jogando futebol, indiferentes ao que se passa no país. A câmera fecha num close up: Bishop parece não acreditar no que seus olhos veem: “Que país é este em que ocorre um golpe de Estado e as pessoas vão à praia jogar futebol?”.
A sequência, como deve ser em se tratando da grande arte, é sutil, sem acréscimos desnecessários, sem arroubos de cunho ideológico, mas nos faz pensar sobre a passividade de um povo que se mostra historicamente indiferente aos problemas que ocorrem à sua frente.
Extremamente bem conduzida do ponto de vista cinematográfico, foi essa sequência que me veio à memória na meia hora antes do jogo entre as seleções do Brasil e da Argentina, quando, num setor da arquibancada do Maracanã, a polícia espancava covardemente torcedores do time visitante.
Enquanto os jogadores argentinos, liderados pelo craque Messi, agarravam-se aos alambrados, numa manifestação de apoio à sua torcida e veemente protesto contra os atos de violência dos policiais do Rio de Janeiro, como que alheios ao que se passava ali, os jogadores brasileiros se divertiam no centro do gramado com a “rodinha do bobo”, aquela em que um grupo forma um círculo e um ou dois deles ficam no centro na tentativa de tocar a bola.
Jogo iniciado, a diferença de perfil psicológico dava-se a ver: a seleção brasileira mostrava-se apática, acomodada, sem capacidade de furar o bloqueio defensivo dos argentinos. Esses, por sua vez, embora visivelmente afetados pelos fatos ocorridos, o que lhes parecia multiplicar as forças, combatiam aguerridamente, sangravam, literalmente, nas disputas da bola; faziam, como vulgarmente se diz, “das tripas coração”, tiravam leite de pedras, até que obtivessem o gol isolado que lhes garantiu a vitória e a retomada da liderança nos jogos das Eliminatórias de 2026.
Daí em diante, o que se viu foi mais empenho e vigor dos jogadores argentinos, mais apatia e falta de ânimo dos brasileiros. A cara de bebê chorão de Gabriel Jesus, cada vez que lhe roubavam a bola, era a metáfora do que se podia ver em campo.
Quarto jogo sem vencer, três derrotas consecutivas, sétima posição na tabela de classificação, e, não fosse desavergonhadamente generoso o regulamento, a desclassificação inédita para uma Copa do Mundo.
Há coisa de muitos anos, durante os jogos mundiais de seleções, uma jornalista fazia a brasileiros e franceses a mesma pergunta: “Se a Copa for decidida nos pênaltis, o que lhe passaria pela cabeça antes de chutar a bola?”
As respostas, racionais ou tolas, diziam bem sobre o que discorro na coluna de hoje.
Tomados de saudosismo e passionalidade, os jogadores brasileiros, sem exceção, referiam-se aos pais, aos avós, às namoradas, noivas, esposas, filhos etc. – os olhos fixados na bola que teriam de chutar a fim de marcar os gols.
Por sua vez, os franceses, em sua quase totalidade, respondiam que apenas deviam ter em mente a consciência de que teriam de fazer os gols.
Coisas do futebol, dirão.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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