Entrevista: Aumento dos casos de violência no âmbito familiar

25/04/2020

Não é de hoje que pesquisadores e estudiosos têm constatado que, quando se fala em violência de gênero, no lar, as coisas não são tão doces como se imagina. Essa é uma realidade comprovada em dados. E se a casa já era, em muitos casos, um ambiente insalubre para as mulheres, as recomendações de autoridades da saúde para que se pratique o isolamento social como forma de frear a pandemia de coronavírus têm se refletido em aumento dos casos de violência no âmbito familiar. Para entender o quadro atual, entrevistamos a psicóloga Natália Nobre, que aborda ainda sobre a temática da violência doméstica, seus diferentes tipos, que podem se potencializar nesses tempos, bem como os constantes desafios inerentes à cultura machista

A Praça – Pesquisas no Brasil e no mundo revelam aumento da violência doméstica em períodos de quarentena. Como é possível explicar essa situação também já percebida em noticiários locais?

Natália Nobre – Nesse momento, diante das orientações para distanciamento social, sabemos que muitas pessoas estão com suas atividades laborais suspensas ou trabalhando em casa, o que implica uma convivência diária mais intensa entre os casais que moram na mesma residência. Sabemos que relacionar-se é algo complexo, visto que envolve pessoas com suas individualidades, personalidades, histórias de vida e pensamentos próprios. Com o aumento da convivência, as características de cada um ficam em evidência, desta forma, a ocorrência de conflitos e desentendimentos pode aumentar, assim como o risco de violência doméstica. Além disso, os casais estão tendo que lidar com a realidade atual de muitas restrições, que por si só é geradora de estresse, irritabilidade, incertezas, ansiedade, dificuldades econômicas entre outras questões, que também podem afetar negativamente a relação. Assim, em casos onde a relação já estava desgastada ou mesmo se configurando como abusiva, estas características tendem a se agravar.

A Praça – Levando em conta justamente este momento, podemos afirmar que esse aumento se dá pela potencialização de algo que já existe na sociedade ou o ser humano assume certos comportamentos diante da pressão? 

Natália Nobre – O problema da violência contra a mulher é fruto de uma construção histórica atrelada às categorias de gênero e suas relações de poder. A desigualdade de gênero tem suas origens vinculadas a cultura patriarcal, que pressupõe relações assimétricas, de valorização e sobreposição do sexo masculino sobre o feminino. Concepções essas que foram endossadas e legitimadas mundialmente por religiões ao longo de muitos anos, e remontam às mudanças advindas do período neolítico. Num passado mais recente, trazemos como marco da década de 50, a criação pela Organização das Nações Unidas (ONU) da ‘Comissão de Status da Mulher’ com objetivo de combater esse tipo de violência, onde foi formulada uma série de tratados que afirmam expressamente os direitos iguais entre homens e mulheres, sem distinção de qualquer natureza. Porém, ainda hoje carecemos de políticas públicas para combater esta realidade, que acarreta altos índices de feminicídio a cada ano. Contudo, situações de restrição e pressão podem acarretar prejuízos físicos e emocionais, como consequência da batalha do organismo de reestabelecer o equilíbrio. Os níveis de estresse podem variar de pessoa para pessoa, e em algumas podem ser geradores de agressividade e comportamentos violentos.

A Praça – O fato de ainda sermos uma sociedade com cultura machista arraigada contribui no momento atual para a violência doméstica?

Natália Nobre – Podemos dizer que sim, tendo em vista o aumento da convivência, como consequências emocionais do momento de restrições e distanciamento social, emoções primárias, como a raiva, o medo e a tristeza, vêm à tona e podem desembocar no aumento da agressividade. A própria cultura machista já pressupõe atitudes geradoras de violência, seja ela física ou psicológica.

A Praça – As principais vítimas de violência doméstica são mesmo as mulheres ou isso também se estende às crianças?

Natália Nobre – O termo violência doméstica refere-se à ocorrência de violência no ambiente doméstico, podendo ser entre familiares, ou entre outras pessoas que convivem no mesmo teto, seja entre adultos ou intergeracional. Temos verificado em noticiários sobre denúncias que chegam aos Ministérios Públicos e também em nossos atendimentos à população, essa realidade do aumento de situações de violência envolvendo crianças e adolescentes, diante dessa nova organização da rotina familiar. O fato de estarem com mais tempo livre, muitos com férias escolares antecipadas, com poucas opções de lazer, em residências com espaço físico limitado, tudo isso constitui fatores geradores de estresse e ansiedade, que contribuem para ocorrência de conflitos e até mesmo da violência em suas diferentes formas.

A Praça – Especialistas afirmam que existe um fenômeno conhecido como ciclo da violência, e tem característica gradativa. Ela pode começar a ser percebida com a violência física?

Natália Nobre – O ciclo da violência caracteriza-se por três fases, são elas: aumento da tensão, ataque violento, e ‘lua de mel’. Consiste em um padrão cíclico de comportamento do agressor, levando a vítima a se manter na situação de vulnerabilidade, dificultando sua percepção da violência sofrida (esta pode ser desde a violência física, até a psicológica ou moral), e consequentemente da tomada de atitude em prol de sua autonomia e dignidade. Na fase da ‘lua de mel’, há um período relativamente calmo, em que a vítima se sente feliz por constatar os esforços e as mudanças de atitude, lembrando também os momentos bons que tiveram juntos. Como há a demonstração de remorso, ela se sente responsável pelo agressor, o que estreita a relação de dependência entre eles. Ocorre um misto de sentimentos, medo, confusão, culpa e ilusão. Por fim, a tensão volta e, com ela, as agressões da primeira fase. O intenso envolvimento afetivo, passa a caracterizar-se como dependência emocional, levando a vítima relevar a situações e se manter na relação. Vale ressaltar que o agressor pode ser tanto do sexo feminino, como masculino, embora as estatísticas apontam que a maioria das vítimas são mulheres.

A Praça – Podemos destacar, a partir de notícias da mídia nacional, que nem sempre a violência é física, e que nesses tempos de confinamento, a violência psicológica pode se acentuar. Como conscientizar as mulheres sobre quais são os tipos de violência e as saídas?

Natália Nobre – É importante difundirmos para a sociedade o conhecimento de quais os tipos existentes de violência e o que os caracteriza. Vejamos a definição de SILVA et al (2007): “toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento, geralmente ocorre entre pessoas que tem alguma relação de poder, no ambiente doméstico e/ou em relações intrafamiliares”. Podemos descrever quatro formas mais comuns de violência intrafamiliar: física, psicológica, negligência e sexual. A violência física ocorre quando alguém causa ou tenta causar dano por meio de força física, de algum tipo de arma ou instrumento que possa causar lesões internas, externas ou ambas. A violência psicológica inclui toda ação ou omissão que causa ou visa a causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. A negligência é a omissão de responsabilidade de um ou mais membros da família em relação a outro, sobretudo àqueles que precisam de ajuda por questões de idade ou alguma condição física, permanente ou temporária. E a violência sexual é toda ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga uma outra à realização de práticas sexuais, utilizando força física, influência psicológica ou uso de armas ou drogas (MS, Brasil, 2001). Ressaltamos que conscientização é um processo interno e complexo, que pode ser estimulado, a partir de trabalhos envolvendo o fortalecimento da autoestima, o autoconhecimento e autocuidado da mulher ou vítima. 

A Praça –  O estado tem anunciado algumas medidas de auxílio econômico para empresas e também para trabalhadores informais. O que poderia ser feito, em termos de políticas públicas, para enfrentar a violência doméstica contra a mulher neste período de pandemia?

Natália Nobre – A violência doméstica contra a mulher é uma problemática antiga, grave e de grande complexidade. Portanto, sua resolução também não se dá de forma simples. Sabemos que a dependência econômica, infelizmente ainda é uma realidade de muitas mulheres, assim como a dependência emocional. Estas são fatores de risco que podem levar as mulheres a manterem-se em relações abusivas, com ocorrência inclusive de violência física. É importante considerarmos como essenciais neste momento também os serviços públicos responsáveis pela proteção e acolhida de mulheres em situação de violência, para que seja mantido seu funcionamento, assim como a realização de campanhas educativas com ampla divulgação de informações esclarecendo sobre o que se configura violência doméstica, onde realizar as denúncias e quais os encaminhamentos necessários. E que essas campanhas não ocorram apenas de forma pontual em alguns períodos do ano.  Considerando que no momento atual, para muitas mulheres, o próprio lar pode estar sendo espaço gerador de medo e ainda mais silenciamento.

A Praça – Em uma realidade local, quais estratégias que fujam do âmbito de campanhas seriam mais eficazes no enfrentamento a esse quadro no município?

Natália Nobre – Penso que poderia ser realizado um trabalho com as equipes das Unidades Básicas de Saúde, e nas escolas (quando retornarem suas atividades, ou mesmo por meio das atividades online), de início com os professores e depois para os alunos, onde o tema possa ser debatido e posto em pauta, para que a sociedade de maneira geral esteja mais atenta e com mais orientação e informação sobre estas questões. Também a produção de materiais como cartazes e posts para distribuição e divulgação pelas mídias digitais. Outra estratégia seria a disponibilidade e ampla divulgação de telefones para atendimentos a vítimas e orientações.   

Natália Nobre é psicóloga, pós-graduada em Saúde da Família e Comunidade (na modalidade de Residência), em Intervenções Comunitárias e Políticas Públicas, Sexualidade Humana (em andamento); Gestalterapia Clínica, Psicoterapia de Casal e Sexologia Clínica

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