Entrevista – Dr. Márcio Araruna, neurologista

“Esclerose Múltipla não tem cura, mas tem tratamento para chegar na remissão da doença, deixando-a adormecida pelo maior tempo possível, evitando os surtos”.

20/08/2022

O Agosto Laranja é uma alusão à mobilização nacional das instituições e entidades organizacionais em saúde sobre a Esclerose Múltipla, doença autoimune incurável que afeta o sistema nervoso gerando danos na comunicação entre o cérebro e o corpo, deixando sequelas graves, impedindo o paciente de levar uma vida normal. Sobre as causas, sintomas e tratamento, o leitor acompanha nesta edição, entrevista com o médico neurologista Dr. Márcio Araruna.

A Praça – O que é Esclerose Múltipla?

Dr. Márcio – Esclerose Múltipla é uma doença inflamatória autoimune que tem como característica a ocorrência de lesões no sistema nervoso central. Funciona assim: nós temos várias células no nosso corpo, que ficam circulando no sangue e que tem a função de nos proteger contra micro-organismos externos, como vírus, bactérias e fungos. Essas células compõem, juntamente com os anticorpos, o nosso sistema imune. Devido a um erro de funcionamento, esse sistema passa a atacar o próprio corpo. No caso da Esclerose Múltipla, o ataque é contra o cérebro e a medula espinhal.

A Praça – Qual o motivo de isso acontecer?

Dr. Márcio – Essa é a pergunta que vale 1 milhão de dólares (risos). Não sabemos ainda o motivo da doença acontecer. Existe uma influência genética e uma influência do ambiente. O que se sabe é que o processo patológico se inicia com uma inflação imunomediada por linfócitos, que são aquelas células de defesa que falei antes. Eles agridem o sistema nervoso central e promovem uma inflamação. Nesse momento, o paciente apresenta sintomas, apresenta um surto. Depois de alguns dias, essa inflamação se acalma e o paciente entra na fase de remissão, como se a doença ficasse adormecida. E a coisa fica funcionando dessa maneira, ao longo dos anos, com períodos de surtos e de remissão. O problema é que esses surtos causam machucados no cérebro, gerando sequelas. Além disso, após um tempo de doença, o cérebro pode começar a apresentar um processo de degeneração. É uma doença que tem um aspecto fisiopatológico bem heterogêneo.

A Praça – Quais os principais sintomas dessa doença?

Dr. Márcio – Os sintomas podem ser os mais diversos possíveis. Tudo vai depender da região do cérebro que está sendo afetada. Se a inflamação acontecer no nervo do olho, a pessoa terá dificuldade para enxergar; se afetar a medula, uma região onde passa muitas fibras nervosas, muitos fiozinhos, vamos dizer assim, a pessoa pode ficar com dificuldade para urinar, pode ficar sem força em um braço, uma perna, pode ficar com dormência em uma parte do corpo; se o tronco encefálico for acometido, pode haver sintomas de visão dupla, paralisia facial, dificuldade para engolir, falta de coordenação dos movimentos.

A Praça – Como é feito o diagnóstico da Esclerose Múltipla?

Dr. Márcio – O primeiro passo para o diagnóstico é a história clínica. O paciente chega com sintomas compatíveis com a doença, o médico suspeita e pede alguns exames. Um desses exames é a ressonância magnética. Essa doença demonstra sinais radiológicos bem típicos. Após juntar a história clínica com as imagens, caso se cumpra critérios clínicos bem estabelecidos na literatura médica, o diagnóstico pode ser concluído. Em geral, também usamos informações laboratoriais de análise do líquor como suporte.

A Praça – Essa doença tem cura?

Dr. Márcio – Infelizmente, não. Mas, isso não significa que não exista tratamento. Veja só. Pressão alta não tem cura, mas tem tratamento. Diabetes não tem cura, mas tem tratamento. Se você for abrir uma lista aqui, vai perceber que muitas doenças não têm cura, porém isso não significa que não há nada para ser feito. Muito pelo contrário. Existe tratamento, existe controle. No caso da Esclerose Múltipla, o tratamento é realizado com substâncias capazes de modular o funcionamento do sistema imune. Vê só como faz sentido: o sistema imune está atacando o organismo, certo? Então, se a gente consegue, através de medicações, deixar esse sistema mais fraco, falando de maneira bem simples, então conseguiremos evitar a ocorrência desses ataques; com isso, a doença fica adormecida. Ela não foi embora, mas está sob controle. O objetivo do tratamento é exatamente esse: chegar na remissão da doença, deixar a doença adormecida pelo maior tempo possível, evitando a ocorrência dos surtos.

A Praça – O diagnóstico cedo pode retardar a progressão rápida da doença?

Dr. Márcio – Sim. Mas, preciso explicar isso de maneira mais detalhada. Essa doença tem uma base muito inflamatória. Porém, em alguns casos, o paciente pode, após alguns anos de doença, após ser exposto a vários surtos de inflamação, entrar em um processo de degeneração. Essa fase é caracterizada por uma piora progressiva dos sintomas. O paciente sai daquela fase em que ficava tendo surtos e remissões, com períodos de crises e de melhora, e entra nessa fase de perda funcional progressiva. Além disso, com o diagnóstico precoce, nós preservamos mais o cérebro, pois se evita a ocorrência de surtos, lembrando que os surtos são crises de inflamação, ou seja, são machucados no cérebro.

A Praça – Pelo fato de a doença afetar o sistema nervoso e interromper a comunicação entre o cérebro e as funções do corpo, o paciente pode ficar totalmente dependente, até para realizar pequenas ações do seu dia-a-dia?

Dr. Márcio – Com certeza. Por isso a necessidade de diagnóstico precoce. E por isso que o mês de agosto é o mês de conscientização da Esclerose Múltipla. A ideia da campanha é exatamente informar à população sobre a doença, algo que tem uma importância vital quando falamos do objetivo de fazer o paciente buscar atendimento precoce. Após um surto, se o paciente não fizer nada, é possível haver uma melhora espontânea daquela inflamação. O problema é que a doença não irá embora. Haverá outros surtos em um futuro. E surto é sinônimo de machucado no cérebro e na medula. Sem contar que há surtos que são silenciosos. Agora imagina o que pode acontecer quando juntamos vários machucados na linha do tempo. O resultado é um cérebro com muitos machucados e um paciente com um declínio funcional considerável. Se é uma doença que tem tratamento e que é passível de controle, é fundamental fazer aquele paciente chegar até o serviço especializado que está capacitado a ajudá-lo.

A Praça – As atrizes Guta Estresser (Bebel, A Grande Família) e Cláudia Rodrigues (Marinete, A Diarista) foram diagnosticadas com a doença e agora planejam lançar uma peça de teatro abordando a doença como tema. O que acha deste tipo de manifesto?

Dr. Márcio – Acho essa iniciativa excelente. Educação é um dos braços mais importantes do processo de promoção de saúde. Isso faz parte da medicina. Não adianta de nada nós termos tecnologia para tratar pacientes, e o paciente chegar tarde ao serviço especializado. Quanto mais rápido o diagnóstico e, por conseguinte, o tratamento, maior será o benefício. Se há pessoas famosas falando do problema, mais pessoas passam a ser impactadas com a informação. Isso é de uma importância gigante!

Perfil

Dr. Márcio Araruna: neurologista pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – FMUSP. Pós-especializado em Epilepsia, neurofisiologia e eletroencefalograma pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

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