Na seara do debate que discute o retorno dos estudantes para as aulas presenciais nas escolas das redes, pública e privada, o jornal A Praça publica entrevista exclusiva com a médica anestesiologista Fernanda Araújo. Mãe de três filhos e doutora em Ciências pela USP, a entrevistada participou de uma live na noite da segunda-feira, 09, em Fortaleza, promovida pelo também médico infectologista Julio Croda, cujo tema era ‘Contribuição das Escolas no combate à Covid-19’
A Praça – Qual a contribuição que a ‘live’ do seu colega, médico, Júlio Croda deu nesta discussão sobre o retorno dos estudantes para as aulas presenciais?
Dra. Fernanda – O Júlio vem desempenhando, já há alguns meses, com seu canal COVID Café, o que considero uma contribuição pública muito importante sobre diversos aspectos que envolvem a pandemia da COVID-19. Foi uma grande oportunidade de discutirmos, longe do sensacionalismo da grande imprensa e das influências políticas que influenciam o tema, a visão de pais e médicos sobre o papel da escola no contexto da pandemia. Foi bom ver que grandes epidemiologistas e infectologistas nacionais compartilham da nossa opinião sobre esse tema tão relevante.
A Praça – Na sua concepção, qual a participação que as escolas podem ter na tarefa de prevenir e combater o coronavírus?
Dra. Fernanda – É interessante essa pergunta, pois durante quase toda a pandemia, tudo que se ouvia sobre o tema tinha por objetivo concluir que o ambiente escolar seria um dos principais locais de disseminação da doença. Falar sobre o papel benéfico das escolas no contexto da COVID-19 é muito importante e gratificante. Primeiramente precisamos citar o comprometimento das instituições de ensino privado em manter o ambiente escolar seguro, trabalhando lado a lado com a secretaria estadual e municipal de saúde, na implementação dos protocolos de segurança. Arriscaria dizer que a escola é hoje o único ambiente no estado onde se cumpre com rigor os protocolos de biossegurança exigidos. Segundo, a escola tem papel muito importante em educar crianças e jovens sobre a necessidade de medidas de higiene pessoal, como lavar mãos e usar máscaras, orientar sobre a necessidade de um distanciamento social seguro; ensinando, inclusive, a importância da responsabilidade social no contexto da pandemia. Terceiro, em sendo a escola o único ambiente onde se cumpre com rigor protocolos de biossegurança, estando a quase totalidade da economia em funcionamento e a população praticamente sem isolamento, ousaria concluir que hoje é mais seguro para a sociedade que as crianças estejam no ambiente escolar, cumprindo protocolos de segurança, que fora dele, onde as aglomerações são frequentes e não há regras a cumprir. Considero hoje que as minhas filhas estão mais seguras na escola que no parquinho do nosso prédio, para não citar outros ambientes que elas frequentam. Entrando um pouco no aspecto técnico, ao cumprir os protocolos de biossegurança, as escolas atualmente são capazes de identificar precocemente casos suspeitos, fazer a pesquisa dos seus contactantes e atuar no bloqueio de eventuais surtos que possam acontecer, tanto dentro da escola, como fora dela, no ambiente familiar.
A Praça – A senhora tem três filhos. Como está sendo este retorno deles para as aulas presenciais?
Dra. Fernanda – Tenho 2 filhas em idade escolar (6 anos e 4 anos) e um filho de 3 meses. Mesmo considerando que o ensino remoto tenha sido em algum momento necessário e tenhamos conseguido segui-lo com êxito na nossa família, a escola é um ambiente que vai muito além da transmissão de conhecimento. As interações socioafetivas que ocorrem no ambiente escolar têm papel fundamental no desenvolvimento neurocognitivo e emocional das crianças. Com a demora do retorno ao ensino presencial, a meu ver muito além do tempo que seria realmente necessário, minhas filhas passaram a apresentar sinais claros de estresse e tristeza. Em poucos dias do retorno às aulas, estavam novamente felizes e engajadas.
A Praça – E como as crianças estão vivendo este momento? Elas têm conseguido se adaptar com segurança?
Dra. Fernanda – Havia toda uma discussão sobre a possibilidade de crianças menores não serem capazes de cumprir protocolos de segurança. Além disto, argumentava-se que uma escola “cheia de regras” geraria estresse nessas crianças, caso o retorno fosse autorizado. O que temos visto na realidade, desde o início de setembro, é que, sim, as crianças menores cumprem os protocolos sugeridos e têm demonstrado bastante resiliência com as novas regras que encontraram nas escolas. O retorno ao ambiente escolar, mesmo que dentro de uma realidade adaptada, tem sido um momento de muita alegria e não de estresse como especulado.
A Praça – Na visão da senhora como mãe, a escola está de fato preparada para este retorno? Podemos falar em patamar de igualdade, entre as escolas das redes pública e privada?
Dra. Fernanda – Sem dúvida a escola privada está preparada e adaptada para o retorno. Investimentos em infraestrutura e treinamento de pessoal foram feitos. Na verdade, elas estão prontas desde julho passado, quando deveria ter iniciado o retorno, segundo o protocolo de reabertura sugerido pelo governo estadual. Infelizmente, o abismo entre a escola pública e privada só aumentou durante a pandemia. Acredito que isto se deve muito mais a uma falta de interesse do setor público em criar as condições para o retorno em suas unidades do que a uma falta de recursos financeiros. Primeiro porque o estado de calamidade pública, prorrogado recentemente no estado até abril de 2020, isenta os gestores de cumprir teto de gastos e dispensa licitações. Segundo porque as adaptações necessárias não demandam um aporte estratosférico de recursos. Exemplos de adaptações simples seriam instalação de pias para lavagem das mãos, distanciamento das cadeiras, instalação de ventiladores e abertura de janelas, além da distribuição de máscaras para alunos, professores e colaboradores. Se construímos hospitais de campanha em 7 dias, certamente teríamos condições de fazer as adaptações necessárias nas escolas. A meu ver, o ponto principal, é a falta de priorização da educação pela gestão pública e, por que não, também pela sociedade.
A Praça – Era necessário acontecer esse retorno agora, considerando questões relevantes como a sociabilidade entre as pessoas, e também pelo fato de mundo estar ansioso por causa do isolamento?
Dra. Fernanda – A necessidade do retorno é urgente por diversos motivos. Educação é uma área essencial em qualquer sociedade e deveria ser uma prioridade absoluta para governos. A experiência internacional, ao contrário do que parecia verdade, mostrou que a escola, quando cumpre procedimentos básicos de segurança, é sim um ambiente seguro durante a pandemia. Crianças e jovens saudáveis dificilmente desenvolverão quadros graves da doença. Já foi demonstrado pela literatura que nessa população a contaminação não se dá dentro da escola e sim no ambiente domiciliar. O ensino à distância foi uma estratégia de educação criada principalmente para jovens adultos, não foi desenvolvido para crianças, principalmente na primeira infância. A escola é o principal ambiente de socialização de crianças e jovens, sendo fundamental para seu desenvolvimento neurocognitivo e social. Crianças que vivem em situação de vulnerabilidade muitas vezes tem na escola a única refeição do dia, o único ambiente seguro, longe da violência física, emocional e sexual. É o ambiente onde estão menos sujeitas à influência de facções, milícias e do tráfego de drogas. Já foi demonstrado nos estudos que professores e funcionários de escolas não apresentam maior risco de contrair COVID-19 que trabalhadores de outras áreas da economia. Quanto maior o tempo fora da escola, maior o risco de evasão escolar. O retorno é urgente e deveria ser prioridade máxima da sociedade e dos governos. Por todos esses argumentos, a balança favorece e muito o retorno do ensino. Não é mais uma questão de que se/quando as escolas devem abrir, mas como elas podem abrir o mais rápido possível.
A Praça – A nova onda da pandemia já assola os países da Europa. Por lá foi necessário adotar novamente as medidas restritivas. Qual a segurança que nos dá de que aqui não vai acontecer o mesmo?
Dra. Fernanda – Pelos motivos expostos acima, as medidas restritivas relacionadas à segunda onda que se observa na Europa não incluem, até o momento, o fechamento de escolas. Por sinal, o Brasil é, dentre as maiores economias do mundo, o país que está há mais tempo com as escolas fechadas. Mais que o dobro do tempo de fechamento quando comparado à média internacional. Chegaremos provavelmente à conclusão que cometemos um gravíssimo erro privando nossas crianças e jovens do ambiente escolar por um período tão longo.
A Praça – Em recente pesquisa foi constatado que 54% dos estudantes estão desmotivados, pelos motivos mais diferentes. A senhora acredita que este seja mais um fator para justificar o retorno dos estudantes para a nova vida normal, de rotina escolar?
Dra. Fernanda – Sem dúvida. Como falei acima, o ensino remoto é uma estratégia criada para adultos. Crianças e jovens precisam da socialização que apenas o ambiente escolar é capaz de proporcionar.
A Praça – A mesma pesquisa revelou também que a pandemia fez aumentar a participação dos pais na vida escolar os filhos. A senhora está neste grupo, ou isso já é uma prática normal na sua relação com as crianças e a rotina de estudos delas?
Dra. Fernanda – Sempre tentei ser presente na vida escolar das minhas filhas, sempre tive um ótimo relacionamento com a escola e com os professores. Acredito que agora, nós pais, muito mais que antes, passamos a valorizar o papel do professor e da escola na vida dos nossos filhos. Esses profissionais tão especiais, que dedicam suas vidas a uma atividade tão nobre e são, muitas vezes, tão desvalorizados e mal remunerados.
A Praça – As crianças em si têm total capacidade de aprender a se proteger das ameaças do vírus, à medida que elas têm acesso às informações. Assim, podem evitar o pior: a contaminação. Mas, e os adultos, por exemplo, as pessoas que estão nas escolas, será que elas têm a mesma postura?
Dra. Fernanda – Crianças geralmente apresentam mais resiliência que os adultos, se adaptando mais facilmente a mudanças. Entretanto, acredito que com liderança e informação de qualidade, sem vieses políticos-ideológicos e sem sensacionalismo, somos sim capazes de fazer com que adultos também tenham uma atitude favorável diante da pandemia. Mas, como exigir postura da população, quando os mesmos líderes que impõe restrições, causam grandes aglomerações por conta de campanhas eleitorais, por exemplo? A pandemia é real, os óbitos são reais, mas, a meu ver, pior do que a doença causada pelo vírus, é a grave crise de liderança e de informação que vivemos nas esferas municipal, estadual e federal no nosso país. O debate público é superficial e regado a interesses políticos/eleitorais. A opinião pública é influenciada por uma imprensa sensacionalista. Desde que passei a militar a favor da reabertura das escolas, fiquei impressionada com a quantidade de “fake news” publicadas sobre o assunto, inclusive por veículos de comunicação “famosos”. Como diria um amigo epidemiologista, “cloroquinizaram tudo”, o tratamento, a vacina e as escolas. Apenas priorizando educação de qualidade poderemos mudar, no médio e longo prazo, este cenário. Educação é essencial e o retorno imediato de todos os níveis de ensino deveria ser a prioridade absoluta da nossa sociedade.
0 comentários