Deixa que os mortos enterrem os seus mortos

02/04/2021

“Repara bem no que não digo”

Sábio do Facebook.

“Decifra-me ou devoro-te”

Machado de Assis.

 

A história que vou contar aqui não pretende gerar admiração, entusiasmo, piedade, comoção ou coisa que o valha. Também não pensem que idealizo os personagens desta história: eles se sacanearam de várias formas. Ninguém é inocente.

Mas há vários tipos de sacanagem; há níveis de canalhice. Confio na inteligência dos leitores para discernir aquelas que são mais usuais das que se ocultam dos holofotes de nosso belo quadro social.

Imaginem que, numa pequena cidade do interior, onde as pessoas não têm o hábito da leitura, tampouco o de visitar bibliotecas públicas, ocorreu de dois jovens se reconhecerem e se amarem da primeira vez que se viram. Peço que me acreditem, pois também sou cético.

Da mesa redonda e empoeirada do fundo do mausoléu público, ele observava a figura esguia que se punha a entregar um livro que pegara emprestado.

Fosse pela forma como ela se inclinava para assinar a devolução, ou pelo modo como se despedia do livro; fosse qual fosse o livro, ele sentiu o impulso de levantar-se e pedir para que a funcionária não guardasse o livro, pois estava esperando para pegá-lo. Esperando por “ele”, pensou, e o pronome estava errado: ele estava esperando por ela.

Entreolharam-se. Prazer, Lili. César, e o prazer é meu. O que se seguiu não carece de descrição. Um reconheceu no outro o que há tanto procurava. Pode soar piegas nos nossos tempos, mas nós sabemos quando acontece. Nem sempre acontece da primeira vez; às vezes demora anos para reconhecermos quem é capaz de caminhar ao nosso lado; e, tragicamente, às vezes nunca reconhecemos.

Passaram a frequentar a biblioteca juntos. A biblioteca era a praça dos namorados: uma praça deserta, com velhas funcionárias de semblante austero, desinteressadas, tão perdidas ali que nunca notavam quando eles usavam a parte de baixo das mesas para trocarem carícias, sob pretexto de apanhar uma caneta, ou um livro que costumava cair sempre que uma das velhas cochilava, já próximo de encerrar o expediente.

Havia mais liberdade entre aquelas prateleiras sujas do que em suas próprias casas, meninos que ainda eram.

Tão dedicados a seus corpos e mentes, passaram nos primeiros lugares de vários vestibulares. E, como tudo que viveram até ali era etéreo, sublime, completo, e, portanto, eterno, fizeram um pacto de nunca se separarem, fosse qual fosse a decisão de cada um.

Escolheram cidades próximas para o ingresso no mundo acadêmico: ele, direito; ela, psicologia. Contra o conselho de amigos e parentes, e apesar de conhecerem pessoas novas e interessantes, e de heroicamente resistirem às investidas mais tentadoras, não só mantiveram o relacionamento como também noivaram.

Como nunca atrasavam semestres, os dois terminariam no mesmo ano, quase na mesma data.

Um dia após a formatura e pouco tempo antes de juntarem os sobrenomes, tiveram uma briga bíblica enquanto discutiam o futuro.

Ela já não queria filhos. Ele se negava a ir morar no mesmo bairro em que morava um antigo namorado dela. Isto se deu perante amigos e familiares, numa chácara que havia sido alugada para a comemoração da formatura dos dois. Para assombro geral, terminaram a relação.

Voltariam duas semanas depois. Mas, nesse ínterim, um velório se colocou entre o casal. Uma vizinha de César, uma velhinha que era avó de uma moça que ele namorou na sexta série, faleceu. O rapaz foi ao velório. Sentiu-se penalizado pelo desespero da neta, que morava com a avó e só tinha ela no mundo.

A órfã viu no gesto do rapaz um quê de afeto, de consideração. Dois dias depois, ligava para ele em prantos. E a partir daí, nunca uma morta esteve tão viva, nunca uma senhora morta foi tão conciliadora. Lili ficava incomodada, mas não via nisso nada além de antiga caridade cristã.

Uma semana após esse primeiro encontro no velório, César se desfazia dos planos com Lili, voltava a sentir o ímpeto do primeiro amor e terminava aquela relação intocável sem explicações. Agora vivia um amor forjado no mundo real, da dor, do sentimento de cuidar de alguém.

Dez anos se passaram. A biblioteca estava com o fim decretado pelo prefeito. César resolveu voltar lá. Viu um livro encostado na mesa de devoluções. E não teve dúvidas quando viu a assinatura. Lili.

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

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