Este nome que não é nosso

30/10/2021

Pobre homem! Era assim que dona Matilde saudava seus clientes. Ato contínuo, inclinava-se um pouco e tocava as duas mãos da pessoa, fazendo uma concha. Não importava qual fosse o gênero, a idade ou classe social do indivíduo, ela sempre recebia com seu  “Pobre homem”.

Ninguém sabia ao certo se o “pobre” era uma referência a situação da pessoa – estar tão desesperada ao ponto de procurar uma cartomante septuagenária de reputação duvidosa; ou se já ali, de entrada, dona Matilde lia a sina dos visitantes.

O fato é que assim o homem foi recebido, já tarde da noite.

– Qual seu nome, meu filho?

– Elizeu. Mas todos me chamam de Welmar.

– Hum-Rum.

– Diga, dona Matilde, o que estou intentando fazer, diga, terei coragem de fazer?

– Coragem todos têm, meu filho. O difícil é sorte.

– Não sorte, só coragem, dona Matilde.

– É. Mas as cartas não mentem…

O homem olhava o ambiente ao redor. O mau cheiro devia subir até às narinas do próprio Deus. Dois velhos magros olhavam de soslaio para ele. Bebericavam alguma coisa e murmuravam. Os móveis velhos, vulgares, caindo aos pedaços. A pequenina mesa com uma toalha preguenta onde a velha punha as cartas. Um vira-lata sobre um tapete encardido. Para onde ele olhava, havia pó, muito pó. Esfregou os olhos. Fitou novamente os dois homens: pareciam agora estátuas de sal. Começou a pensar que estava no lugar certo.

– As coisas que eu fiz, as coisas que estou por fazer…

– É. As cartas não mentem…

– Ah, dona Matilde! Se todos soubessem quem realmente sou!

– Todos sabem, meu filho. Você é Elizeu, que todos chamam de Welmar.

Ao ouvir essas palavras, o homem ficou transido. Pensava nas coisas que estavam “por fazer”. Começou a delirar.

Ao ouvir “Elizeu”, pensou ter ouvido “Filisteu”. Impacientava-se. Mexia nos bolsos; afrouxou o cinto.

Dona Matilde sentiu a presença do cano do outro lado da mesa. Mas não deu um passo, não mudou a postura um milímetro. Em seu currículo havia consultas a famosos pistoleiros. Dizem que Belchior em pessoa havia feito uma consulta, às escondidas, com a cartomante. O cano por baixo da mesa, por baixo dos panos, apontado para a velha virilha, já não era o inimigo.

– Eu vou fazer coisas terríveis esta noite.

Ficaram em silêncio. E o cano a girar, por baixo da mesa. A velha arregalou os olhos. O homem quis saber.

– As cartas mostram um homem, um velho homem. Ele é uma rapina, meu filho. Disse coisas terríveis de você. Quis roubar tudo que é seu. Este homem quis tirá-la de você. Sim, falo daquela mulher…

-Este homem me dá medo, meu filho, veja!

Dona Matilde mostrou os pelos eriçados.

– Diga, dona Matilde, quem é este homem?! Confirme se é quem eu penso. Este homem é a causa de tudo. Anda, fala, desembucha!

– Este homem é Elizeu, que todos chamam de Welmar.

 

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

MAIS Notícias
O imposto do pecado
O imposto do pecado

Vício. Falsas aparências. Falsas amizades. Degradação. Ilusões perdidas. Fossa. Sertanejo. Brega: na música, nas roupas. Confissões estranhas de desconhecidos etc. Todos os dias tenho encontro marcado com tudo isso. Já me acostumei. A propósito: eu me chamo Hugo. Mas...

Aquela coisa louca que fazíamos
Aquela coisa louca que fazíamos

  Aquela coisa louca que fazíamos. Aquela coisa de virar madrugadas com a orelha no telefone, acariciando apenas as palavras e um sorriso imaginário, sem ver o tempo passar. De acordar e mandar mensagem para saber como foi o sono. Aquela coisa louca que fazíamos...

Ele, sempre ele!
Ele, sempre ele!

Foi num desses dias em que até candidato em véspera de eleições apressa o passo. Dia de testas oleosas e sobrancelhas franzidas. Acordei suando frio, transpassado por um pesadelo que logo se confirmou. Ainda semiacordado, chequei o celular. Quinze ligações perdidas....

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *