Farinha do mesmo saco

20/08/2022

Ao sentar-me diante do computador para escrever a coluna de hoje, ocorreu-me lembrar da frase atribuída ao escritor americano Mark Twain: “A História não se repete, mas rima por vezes”. É o que concluo ao acompanhar através da imprensa o movimento das Forças Armadas com relação ao 7 de setembro que se avizinha.

No ano em que se comemoram os 200 anos de nossa Independência, mais que nunca era de se esperar um desfile cívico marcado por ações de cunho solene e celebratório, mesmo que o país se encontre na situação difícil em que se encontra, com índices sociais que beiram o inacreditável. Nunca é muito lembrar que existem hoje no Brasil 33 milhões de famintos.

Na contramão dessa expectativa, no entanto, leio nos jornais o que seria impensável num país minimamente respeitoso para com a sua História, tenha sido ela bem ou mal contada na perspectiva do discurso oficial. Seja como for, a data assinala o simbolismo de nossa libertação, pelo menos no que diz respeito aos primeiros vínculos de dependência a outra Nação; no caso, Portugal, a partir do que se convencionou chamar romanticamente de Grito do Ipiranga: “Exército cancela desfile e estará apenas em ato bolsonarista no 7 de setembro no Rio”.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, “O anúncio atende aos desejos de Bolsonaro, que enfrentava (frise-se) resistência do Alto Comando do Exército. Além da força terrestre, o presidente já havia determinado a participação da Marinha e da FAB (Força Aérea Brasileira), no ato na orla carioca”.

Num trocadilho de quinta, pode-se dizer: ‘Uns querem. Outros, não. Mas, no fundo, todos querem.’. Não importam os meios…

Aqui entra a frase atribuída a Twain. Nos manuais de literatura, entende-se por “rima” a repetição de sons iguais ou similares, quer vogais ou consoantes, quer a combinação delas em uma ou mais sílabas, usualmente acentuadas e ocorrendo em intervalos determinados e reconhecíveis”, para citar a famosa definição de Babette Deutsch. A metáfora do escritor americano equivale a afirmar, portanto, que a História se não se repete com rigor, ecoa aqui e além, como as sonoridades de um poema, fatos que marcaram o seu desenrolar.

A exemplo do que se vê hoje na perspectiva de um golpe improvável, por força da mobilização da sociedade civil organizada, também em 1964, e nos anos que se seguiram, a oficialidade mostrava-se dividida. É ler os bons autores sobre o período, a exemplo de Elio Gaspari e Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, para constatar a “rima”.

Moniz Bandeira, em livro notável sobre o período, afirma com clareza: “Os militares vinculados ideologicamente à antiga ‘Cruzada Democrática’ foram os que então se apossaram do poder e, sagrando o putsch como ‘Revolução Democrática’ ou ‘Revolução Redentora’, recorreram aos métodos de guerra civil para destruir a oposição e esmagar toda e qualquer forma de resistência”.

Na outra ponta, ainda citando Moniz Bandeira, “… os generais Olympio Mourão Filho, Augusto Cézar de Castro Moniz de Aragão e Justino Alves Bastos, entre outros, julgavam que Castelo Branco não enfrentava com a necessária energia os problemas políticos e, como parte do oficialato, também se opunham ao programa econômico e financeiro, de caráter liberal, implementado pelo embaixador Roberto Campos, ministro do Planejamento, e por Octávio Gouveia de Bulhões, ministro da Fazenda, de conformidade com as diretrizes e os interesses de Washington e do FMI”.

A juntá-los, como farinha de um mesmo saco – para além da preguiça histórica e do apego à boquinha, que, também agora, colocam do mesmo lado fundamentalistas do bolsonarismo-raiz e “resistentes” aos arroubos do atual presidente -, o poder. Entenda-se, com isso, a reeleição de Jair Bolsonaro.

Assim, nos 200 anos da Independência, o 7 de setembro será comemorado com um comício gigantesco em Copacabana, ainda que contra a democracia e o Estado democrático de Direito.

Na literatura, costuma-se dividir a rima quanto à natureza, quanto ao acento, quando à qualidade e quanto à disposição. Na política, não é muito diferente.

Mark Twain tinha razão.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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