Era um domingo comum: alguns amigos bebiam comigo enquanto jogavam baralho. Como não sei e nem tenho interesse por qualquer tipo de carteado, de jogo, apenas assistia às partidas. Tenho outros vícios; este, não. Resolvi então que deveria arrumar o meu apartamento. Homem que mora sozinho, e que é desorganizado, já sabe: a casa é cenário de guerra.
Na realidade, só há uma razão para um homem cuidar do seu apartamento: mulher. Do contrário, se uma bela mulher nunca visitasse nosso lar para minimizar a dureza que é a vida, o existir, certamente viveríamos em meio a latas de cerveja, bitucas de cigarro e afins.
Ambiente arrumado, amigos se foram… Hora de continuar bebendo, só que à espera da sua vinda. Fumei uns três cigarros, talvez… Foi quando ela chegou. Enquanto subia as escadas que dava acesso ao meu esconderijo do mundo, apreciei a vista da mulher que se fazia no recinto, subindo, degrau por degrau, para a minha alcova e para a minha vida.
O perfume, claro, se fazia intenso, misturado ao seu cheiro próprio de mulher. Nem bem entramos, seus lábios vermelhos tocaram os meus. Foi aqui que fomos imersos em um mundo ímpar; seguíamos, aos poucos, derivando para e por um caminho e mundo que raramente se visita. E quando ocorre, meu caro leitor, faz-se necessário aproveitar cada segundo dessa raríssima viagem ao corpo e alma do outro, imbricado ao seu, como uma simbiose, um híbrido novo e raro.
Teria eu finalmente encontrado uma daquelas raras mulheres dignas dos clássicos romances livrescos que tanto li e imaginei um dia vivenciar, conhecer? Uma femme fatale, meu caro, uma femme fatale!
O caso era que o torpor inebriante se fazia presente entre aquelas paredes. Suor, cigarro, cerveja… os cheiros se misturavam, dançavam em odes ao prazer. O toque e o tocado… o cheiro e o cheirado… o beijo e o beijado… tudo era sorvido com uma sede visceral, um átimo de vida dedicado ao raro e angelical paraíso em terra, todavia, com aquele gosto de pecado, de flamejante nirvana dividido.
Era o encontro com uma sílfide, que estimulava em mim todo o meu ser dionisíaco há muito recluso no vão esquecido dos porões do meu ser. Neste instante, entendi o porquê de singular sentimento, na vida, ser assim tão intrigante, viciante, complexo: porque mexe com nossa alma, nosso âmago, no mais íntimo do nosso ser. Resgata, como um naufrago à deriva, para o solo seguro dos braços do ser especial.
Talvez o relato que vos trago, amigo acompanhante deste estimado periódico, lhe pareça pueril e tolo, mas lhe garanto que não o é; e dar-me-ia igual razão caso o amigo vivesse similar epopeia. Se achares alguém assim, se tiveres esta sorte rara, saberá e lembrará deste relato, certamente. Bem, agora, enquanto me sirvo de mais uma cerveja, o meu pensamento devaneia; ela agora povoa as minhas inclinações mais nobres e animalescas. No meu som, o mestre Belchior, poeta-filósofo cearense, canta Balada do amor perverso. ‘‘Deixem-me ser aprendiz do amor perverso, do amor feliz. Lugar comum de anjos e animais.’’
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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