Surgiu sem que ninguém soubesse ao certo a razão: um bando de gatos envenenados começou a pipocar na cidade. Os bichos eram encontrados nos meios-fios, à beira das calçadas, nas praças. Pareciam animais empilhados. A cor do sangue denunciava a hora da morte.
As pessoas passavam ao largo sem que ninguém sequer lançasse um olhar de pena ou indignação. A frase “Prefiro bicho à gente” parecia esquecida. Era um cinismo coletivo. A luta pela vida, pelo emprego, pelo casamento havia transplantado os interesses pela causa dos mais frágeis.
Ana ainda não tinha topado com um bichano esticado no chão. E justo naquela manhã em que ela acordara toda feliz imaginando o que iria ganhar no dia dos namorados, deparou-se com o fenômeno. Quis desviar o olhar, num gesto de imitação coletiva inconsciente. Mas ficou ali, paralisada.
O caso é que as tragédias emocionais da vida de Ana sempre vinham antecedidas pela doença ou morte de algum bicho. No primeiro relacionamento, com Calvino, o cão do casal teve calazar. Houve briga acerca de sacrificar ou não o animalzinho. Ela dizia não, mesmo sem dinheiro para o tratamento; ele, que preferia gatos, queria se livrar do animal. Ao fim, foram dois sacrifícios: o do bicho e o da relação.
Ana cresceu vendo a mãe descontar as raivas do marido nos bichos. Chutava cachorro, enxotava gatos do telhado com pau e pedra; atirava em passarinho… Ana seguia, portanto, a inclinação natural dos filhos: ser o oposto dos pais.
Quando criança, criava escondido da mãe uma rolinha. O disfarce era a casa do vizinho. Levava alpiste. Cantava para o pássaro. Um dia caiu doente. Duas semanas. Quando retornou para ver a rolinha, ela estava morta. Morreu de fome por desleixo do vizinho. Dias depois, para selar sua desgraça, o pai foi embora e nunca mais voltou.
Naquela manhã ensolarada de onze de junho, uma sexta-feira, sua vida seguiria o mesmo roteiro: acordar às cinco, preparar o almoço, vestir o uniforme ridículo da fábrica, descer com a bicicleta a escadaria do cubículo em que morava e se misturar com tantas outras moças iguais, de uniforme ridículo e de bicicletas comuns.
Ajudar as novatas a mexer nas máquinas. Ter de se virar com meia hora de almoço. Ouvir gritos, ouvir queixas, olhar caras cansadas. Trabalhar grávida.
Mas não podia reclamar: um elo vital estava chegando ao mundo para unir ela a Valdemar, o rapaz do empacotamento. “Que será que vou ganhar amanhã? Ele deve ter economizado o mês inteiro, já que não sou só namorada, sou mãe”. Sentia umas cosquinhas na barriga ao imaginar. Esquecera o gato envenenado.
Mas, coisa estranha, Valdemar faltou ao trabalho. Mandou mensagem, ele não visualizou. Ligou. Nada. Falou com a mãe dele sobre o desaparecimento repentino. Ela se dignou a responder:
– Ih, minha filha, esqueça. Aquele ali é igual ao pai: quando sente o cheiro da responsabilidade, vaza.
Ficou sem acreditar. Não podia ser! Não agora, não aqui! Começou a se apoiar na máquina de costura como se fosse desmaiar. Uma amiga acudiu:
– Eu não vou deixar você surtar. Não aqui!
A amiga fez-se de escudo para que as outras não vissem e caíssem na gargalhada. Era a divisão do cinismo pelo trabalho.
Ainda trôpega, encostou a bicicleta. Esperou todas saírem. Ficou paralisada. Lembrou do gato envenenado. Deu um uivo ao nada. E viu escorrer o líquido por entre as pernas, feito um leite estragado.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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