Gosto se discute, sim

11/05/2024

 

Do professor, vira e mexe, alguém quer saber: “Afinal, gosto se discute?” A questão, de aparência tão simples, exige cuidados, nomeadamente para quem, como eu, dedicou seus dias a falar prioritariamente da Arte.

Antes da resposta, precipitação a que me recuso lançar, formulo outra questão: “De que ‘discussão’ estamos falando?” É que o juízo de gosto (Kant), jamais pode ser visto como um juízo de valor. O mesmo se dá em contrário, ou seja, não posso atribuir a algo um valor tomando por base o meu gosto.

A estética kantiana é formulada não como uma dimensão objetiva, fisicalista, pautada pelo raciocínio lógico. A reflexão estética, para ele, passa por estados mentais, subjetivos, estando por isso voltada para as condições de receptibilidade, do prazer do sujeito.

Não me causa espécie, nem desmerece o meu interlocutor, quando diz: “Adoro a música sertaneja!” Vá lá, que goste e descubra na sua experiência estética algo que lhe dê prazer, que lhe faça ver naquele tipo de música a Beleza que é em si uma das funções da arte, ou melhor, que pode ser definida como a função estética da arte.

No entanto, se tomasse essa declaração do meu interlocutor como um juízo de valor, seriam outros quinhentos. Isso porque, com um mínimo de conhecimento musical, teria como evidenciar que a música de Tom Jobim, de Egberto Gismonti ou mesmo o violão de Raphael Rabello, exigem uma capacidade elaborativa, um senso estético, uma sensibilidade artística muito mais rebuscada, porque pautada pelo domínio do instrumental teórico.

É que não se pode confundir capacidade analítica com experiência estética. Eu amo a interpretação de Roberto Carlos (quase a perfeição), mas jamais incorrerei no erro de afirmá-lo maior do que Luciano Pavarotti.

Há quem afirme, e, bom bergmaniano, aceito: “Não gostei de Morangos Silvestres.” Jamais acharia razoável, contudo, ouvir: “Este filme é ruim.” Ao emitir seu juízo embasando-o no juízo de gosto, num tipo de subjetivação despretensiosa (o prazer desinteressado com que Kant define o Belo), e através dele atribuir ao filme um valor, o espectador incorreria num erro de análise, ignorando o que existe em Bergman de procedimentos cinematográficos de elevada qualidade estética: roteiro, montagem, escolha de planos, movimento e angulação de câmera, textura do fotograma, recursos de iluminação etc., além de mergulho na alma humana, de sondagem do conflito do homem a partir da memória. Gosto, nessa perspectiva, pode e deve ser discutido.

Como li há poucos dias num artigo sobre a crítica política, assinado por Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, “há coisas de que não gosto, mas que podem ser sublimes em seu gênero”.

Diz ele: “O gosto e as preferências continuam sendo pessoais ou coletivas, mas as razões pelas quais gostamos, os programas executados em uma determinada obra, as soluções encontradas pelo realizador e sua originalidade, os padrões que orientam o que é considerado medíocre ou sublime, tudo isso é discutível”. Perfeito.

Aliás, também em política, como em tudo na vida, gosto se discute (principalmente nela) quando trabalhamos com elementos, informações, histórico, provas cabais daquilo que está envolvido em nosso juízo.

Quando um lado abomina a democracia, o outro não; quando um lado faz a opção dos endinheirados, o outro não; quando um lado desconhece a necessidade de reparação para com negros e indígenas, o outro não; quando um lado exalta a tortura, o outro não; quando um lado é homofóbico, misantropo, o outro não; quando um lado propõe a volta de um regime autoritário, que prende, tortura, mata, o outro não etc., a discussão em torno do gosto ajuíza o meu “lugar de fala” como homem de esquerda, que considera muito ruim o que a extrema direita propõe.

Nesse caso, sem meias-palavras, afirmo: “Gosto, se discute, sim.” E revela o homem.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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