Greta Garbo, de Edmilson Caminha

09/08/2024

De Brasília, por correio, chega-me às mãos o recém-lançado “Greta Garbo, quem diria, não morreu em Araxá”, de Edmilson Caminha. O título é aproveitado de uma crônica do livro em que o autor, com apuro de linguagem e irretocável domínio da carpintaria textual, discorre sobre crônica de Carlos Drummond de Andrade, escrita por volta de 1954, na qual o escritor mineiro narra uma improvável visita da atriz Greta Garbo a Minas Gerais.

A crônica, à época, causou o maior frisson entre admiradores de Garbo, cuja beleza, para além dos padrões clássicos, Drummond descreve de forma hilariante: “Tem um corpo de tábua de passar roupa, depositado sobre dois pés enormes. […] Um corpo que não recomenda nem pelo brilho dos olhos nem pela correção do nariz nem pela exiguidade da boca. Criatura seca, pobre de curvas, rica de ângulos, e seguramente sem nenhum desses predicados que caracterizam e dão preço às nossas belezas dos trópicos. Beleza, talvez, para os esquimós, se o belo para o esquimó não fosse uma autêntica esquimó, e não uma cavalheira comprida e trágica, mórbida, antipática e artificial […]”.

A atriz sueca, sabe-se, era objeto de desejo de nove entre dez cinéfilos, com atuações que a imortalizaram em pelo menos três ou quatro filmes inesquecíveis, a exemplo de Mata Hari, Grande Hotel, Ninotchka e, sobretudo, o soberbo Rainha Cristina, de cuja narrativa destaquei em crônica uma cena que considero das mais belas do cinema.

Desejada e belíssima, em que pese a ironia de Drummond, Greta encerraria sua carreira nos píncaros da glória, aos 36 anos, entregando-se a uma solidão esquizoide até morrer, em Nova York, em 1990. Nunca esteve no Brasil, e a crônica de Drummond, claro, não passava de uma irreverência do itabirano, afeito a estripulias pouco condizentes com o seu perfil psicológico tradicionalmente traçado pelos historiadores da literatura brasileira. Imprevisível, surpreendente como escritor e como homem, Carlos Drummond de Andrade esclareceria o ardil uma semana depois: “Eu menti”. Apenas pregara uma peça nos leitores, como a elevar a crônica, gênero literário caracteristicamente adequado para as amenidades do cotidiano, ao status de grande literatura, aquela capaz de criar irrealidades como se realidades fossem.

Realizando um tipo de “mise en abyme”*, Edmilson Caminha curva-se sobre a crônica de Drummond para erigir, a partir dela, uma notável experiência de cronista, fazendo-o, como disse, da altura de um escritor absoluto, inventivo, capaz de extrair do hipotexto (o texto orginal) a matéria-prima de que lança mão para fazer metaliteratura de altíssima qualidade.

Profundo conhecedor da obra de Carlos Drummond de Andrade, de cuja reedição completa, pela Record, é o principal responsável, Caminha desfecha sua notável crônica com uma carta, da própria Greta Garbo, para Drummond, reportando-se ao fato.

A descoberta da existência do documento, por si só, vale um livro, já não fosse a escrita atribuída a atriz sueca uma página de valor literário inquestionável. Com a palavra o cronista: “Duas folhas de papel fino, cor-de-rosa, já manchadas pelo tempo, datilografadas sem rasuras, em que o destinatário como de costume anotou com sua letra pequena, acima do cabeçalho: Greta Garbo, s/r (sem resposta?)”.

Consciente de como se deve desfechar uma boa crônica, arrematando-a com exatidão, vigor e poesia, Edmilson Caminha faz do elemento periférico, do componente marginal, o eixo artístico central de sua bela crônica, como se a nos dar uma aula sobre uma forma narrativa ao mesmo tempo simples e desafiadora. Promete manter em anonimato o nome da bibliotecária itabirana que lhe confiou a leitura da carta, bem como (pasmem!) tirar-lhe cópia para publicação: “Assim o farei”, diz ele, como a tornar pública sua lealdade, “ao menos pelos próximos 25 anos, a exemplo do segredo guardado por Drummond…”

E nos dá a ler a missiva preciosa.

*Narrativa em abismo, termo usado pelo escritor francês André Gide para falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Consiste num processo de reflexividade literária, de duplicação especular.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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