Em 06 de janeiro de 1970, uma terça-feira, a cidade de Iguatu foi acordada com a triste notícia da morte do médico humanitário Dr. Manoel Carlos de Gouvêa, sergipano de nascença, mas que havia migrado com os pais para o Ceará, no seu primeiro ano de vida.
Faleceu vítima de um enfisema pulmonar, às 0h05 (zero hora e cinco minutos) da madrugada. Morreu em casa, na Rua 15 de novembro, 690, seu endereço desde que havia chegado à cidade ainda na década de 1920.
A escolha de Iguatu para morar e escrever seu legado como médico e político se deu quando do seu retorno da Bahia, onde havia se formado em Medicina e viajava de navio para Fortaleza, com a esposa Maria Rosa Gouvêa, sua prima legítima. Era dia 13 do mês de junho, data consagrada a Santo Antônio, de quem Dr. Gouvêa era devoto. Ao girar com o dedo num mapa que encontrou nas dependências do navio, foi em cima da cidade no Estado do Ceará onde estava enumerada com 13 e teria anunciado à esposa: “É aqui, nesta cidade, Iguatu, onde vamos construir nossa família”. E assim o fazendo, a Iguatu chegou pela recém construída estrada de ferro. Desembarcou na estação da praça que anos depois levaria seu nome, cuja placa, Praça Dr. Manoel Carlos de Gouvêa (atualmente Praça da Criança), ainda está fixada na parede do imóvel, onde ele residiu até seus últimos minutos de vida.
Dr. Manoel Carlos de Gouvêa quando partiu para o plano superior estava com 78 anos. Na sua trajetória como médico deixava um rastro inumerável de pessoas, as quais assistiu, medicou e cuidou, cercadas de todas as atenções, fornecendo aos combalidos não só o leito hospitalar, mas também o remédio e até o alimento. Tudo isso sem que fosse cobrado nenhum dinheiro. Sua maior obra física, de saúde e social, sem dúvidas foi o Hospital Santo Antônio dos Pobres, que acolheu e tratou a perder da conta os mais diferentes cidadãos e cidadãs que ali chegavam de todas as partes.
Medicina, política, humor e beneficência
Na sua trajetória como político exerceu quatro mandatos de prefeito, tendo sido também eleito para a Assembleia Legislativa. Neste campo, também sua maior obra foi mesmo o jeito virtuoso de ser. Autêntico, verdadeiro, sincero e honesto. Morreu pobre, sem recurso nenhum, deixando para os anais da história o maior legado que um homem público possa guardar: da honestidade, transparência e lisura.
Falecido há cinquenta anos, ainda hoje Dr. Gouvêa é lembrado, não somente pelos seus feitos como médico e político, mas também pelo seu jeito engraçado de encarar as situações do dia-a-dia e fazer piada com tudo e todos. Suas memórias são volumosas em três vertentes: o doutor dos pobres, o político correto e o humorista nato. Impossível falar sobre ele e não caminhar numa dessas trilhas de sua existência. Uma estirpe de cidadão que faz falta aos dias atuais, em tempos de descaso com a coisa pública, intolerância e indiferença com o outro, e menosprezo com os valores morais. Assim, não é difícil parar e imaginar, como seria Dr. Gouvêa convivendo num Iguatu de hoje? O leitor já parou para imaginar?
Imaginação à parte, o fato é que Dr. Gouvêa, mesmo tendo nos deixado há cinco décadas, permanece com suas lembranças muito vivas, principalmente entre aqueles que o conheciam e os que com ele conviveram. O dia do seu falecimento e sepultamento, cuja data foi lembrada esta semana em 06/01 (segunda-feira), foi um acontecimento histórico na cidade. Sua morte repercutiu em todos os meios da sociedade da época. Um condolente sentimento de luto que assolou esta gente em todas as camadas sociais, no meio político, comercial e popular, com particularidade no meio daquela gente a quem ele tanto amava. Fez o bem, somente o bem ao longo de toda sua trajetória. A retribuição disso foi notada na multidão que compareceu ao velório e sepultamento.
Testemunha viva, atendente por 24 anos no Hospital Santo Antônio dos Pobres
Dona Valda, Maria Valdelice Sarmento Cézar Magalhães, 93, morou no Hospital Santo Antônio dos Pobres, onde também trabalhava como Auxiliar de Enfermagem por 24 anos. Foi contratada para substituir sua irmã Eimar e ficou. Ali usufruiu do respeito, amizade e confiança de Dr. Gouvêa, por quase três décadas. Só deixou a instituição para se casar. Era responsabilidade de Valda agendar os pacientes para Dr. Gouvêa atender. Não tinha salário fixo. Recebia doações que vinham do reconhecimento e generosidade das pessoas que eram atendidas no hospital. Ela lembrou que Dr. Gouvêa era um ser humano iluminado, um homem generoso e caridoso, não deixava ninguém sem atendimento. Na época, lembra ela, Dr. Gouvêa fazia parte de uma geração de outros médicos, Dr. Agenor Araújo, Dr. Durval, Dr. Mendonça Neto e Dr. José Gondim.
Atualmente dona Valda reside na Vila Agenor Carneiro. É lúcida, tem boa saúde e guarda memórias vivas da convivência com o médico e político que se tornou conhecido e até virou motivo de anedota, não somente por um homem de “temperamento difícil”, mas também pelas suas “tiradas”. A filha da senhora Valda, Gabriela, médica, admite que Dr. Gouvêa, pelo seu espírito solidário em se condoer sempre com os problemas dos outros, e por ser o médico humanitário que foi, indiretamente continua sendo motivo de inspiração para ela.
Dona Valda lamenta que Dr. Gouvêa não tenha vencido o enfisema pulmonar que o tirou da vida para a morte. “Foi um dia muito triste, para quem convivia com ele, trabalhava com ele, para a cidade, enfim, aquele dia 06 janeiro, por mais que passe o tempo, a gente vai lembrar com tristeza”, afirmou.
Vizinhas que se sentiam filhas
Para as irmãs Maria de Lourdes, 85, e Socorro Nogueira, 82, Dr. Gouvêa foi como um pai. A casa delas fica ainda vizinha ao imóvel onde o médico morou. Socorro é uma professora aposentada e a irmã Lourdinha, costureira. Na sala de estar da casa delas o maior retrato na parede exibido em moldura é do Dr. Gouvêa. Uma relação de amizade que começou entre os pais delas, seu Chico Nogueira, dona Antônia Nogueira de Melo e Dr. Gouvêa, em 1945, quando a família chegou a Iguatu e foi morar vizinho ao médico, na Rua 15 de novembro, então conhecida como Rua do Cisco.
Está sob os cuidados das duas irmãs o casarão onde Dr. Gouvêa morou e depois dele o sobrinho Dr. Edson Gouvêa. A fachada do prédio foi tombada para preservar a arquitetura original e internamente há muitos objetos pessoais que pertenceram a Dr. Edson e Dr. Gouvêa. Para elas, a casa, os objetos, livros, móveis e utensílios domésticos retratam as últimas lembranças do tio (médico) e sobrinho (educador), e a relação direta e influente deles com o desenvolvimento de Iguatu.
Lourdinha e Socorro eram duas entre as dezenas, centenas e milhares de pessoas no adeus a Dr. Gouvêa. As duas lembram o clima de tristeza que se abateu sobre a cidade, naquele 06 de janeiro. “Era uma cidade de luto, uma tristeza profunda, a gente via aquele mar de gente no enterro e a tristeza estampada no semblante das pessoas”, afirmou Socorro. “Dr. Gouvêa tinha um amor muito grande por Iguatu, por isso tanta gente estava no sepultamento dele”, disse Lourdinha.
Herança moral, do exemplo, da dignidade para neta
Clotilde Maria de Gouvêa Oliveira é neta de Dr. Gouvêa. Ela é filha de Francisca Terezinha de Gouvêa Oliveira, filha adotiva de Dr. Gouvêa e Rosa Maria Gouvêa. Clotilde, que mora atualmente no interior de São Paulo, expressou seu sentimento de saudade do avô, médico e político que mudou a concepção de uma cidade inteira, sobre a forma de governar e conquistou o coração de milhares de iguatuenses, pela sua maneira franca e direta de ser: “50 anos sem a presença de Dr. Manoel Carlos de Gouvêa. Gostaria que todos soubessem que meu avô é parte principal da minha vida, tenho um eterno orgulho de ter crescido ao seu lado. Ele foi e sempre será um exemplo. Deixou para mim a herança moral, a herança do exemplo, da dignidade… Deixou também um enorme espaço que nunca será preenchido… Agora, apenas saudade e amor eterno… e gratidão. Obrigada por esta oportunidade. Agradeço ao jornal A Praça por toda homenagem ao meu avô”, disse emocionada.
Vida e obra de Dr. Gouvêa registrada em livro
O maior e mais completo registro da carreira profissional e vida pública do médico Dr. Gouvêa está composto num trabalho acadêmico, da pedagoga Francisca Aureny Alves Bezerra. “Vida e Obra de Dr. Manoel Carlos de Gouvêa’, livro de 50 páginas, traça toda a trajetória do médico, desde o seu nascimento em Sergipe, a vinda para o Ceará, a carreira acadêmica, os primeiros passos na medicina e a chegada à Iguatu.
O livro traz em seu corpo literário não apenas uma biografia, mas um autêntico registro histórico, de um dos homens públicos mais influentes para Iguatu. O médico, o gestor público, as eleições e os seus mandatos que se seguiram (1926), primeiro prefeito eleito pelo voto popular, reeleito em (1928), deposto na Revolução de 30, mas novamente eleito em 1935, deputado estadual em 1946, 1º suplente de deputado federal em 1950 e novamente eleito prefeito da cidade em 1958.
Aureny Bezerra declarou que a ideia de escrever o livro surgiu na faculdade, quando ainda cursava Pedagogia na FECLI – Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Iguatu, nos idos dos anos 80. Segundo a autora, numa das disciplinas do curso, os acadêmicos foram estimulados a compor trabalho sobre a vida pública de algum homem ou mulher, políticos da região. Aureny relatou que não teve dúvidas quando lembrou de homenagear o médico Dr. Gouvêa, dada a importância de sua história para Iguatu e o Centro-Sul.
A obra torna-se ainda mais completa e relevante na página 11, onde a autora traça um registro cronológico da vida do homenageado:
1891 – 25 de dezembro: nasce Manoel Carlos de Gouvêa
1892 – 03 de agosto: os pais são transferidos para Fortaleza-CE
1828 – Inicia seus estudos no Colégio Cearense
1907 – Viaja a Salvador-BA e dá continuidade aos seus estudos no colégio 7 de Setembro.
1910 – Retorna a Fortaleza onde prossegue seus estudos no Liceu do Ceará.
1913 – Volta a Salvador-BA e dá continuidade aos seus estudos indo frequentar o curso Elefante e a Faculdade de Medicina da Bahia.
1918 – Conclui o curso superior na Faculdade de Medicina
1919 – 16 de janeiro: colação de grau
1919 – 22 de fevereiro: casa-se com sua prima Maria Rosa de Gouvêa
1919 – abril: ocupa o cargo de médico do Estado e é designado para Soure (Caucaia)
1920 – 19 de setembro: chega a Iguatu e começa a clinicar na Farmácia Central
1924 – 19 de março: funda a Sociedade Beneficente de Iguatu
1924 – 19 de maio: início da construção do Hospital Santo Antônio dos Pobres
1924 – 13 de junho: lançamento da Pedra Fundamental do Hospital Santo Antônio dos Pobres
1926 – 15 de novembro: disputa o cargo de Prefeito Municipal
1926 – 1º de dezembro: toma posse no Executivo Municipal
1928 – 1º de dezembro: empossado prefeito reeleito pela 2ª vez
1932 – Designado médico para assistir os operários das frentes de serviços em Lima Campos e Solonópole
1935 – Prefeito pela terceira vez por nomeação (poucos meses) eleito no mesmo ano e permaneceu no cargo até 1945
1947 – Eleito deputado estadual
1958 – Eleito prefeito de Iguatu pela quarta vez
1968 – Homenageado com o título Honorífico de Cidadão Iguatuense
1970 – 06 de janeiro: fim de sua caminhada terrena.
Dr. Gouvêa, na concepção de Wilson Lima Verde
O escritor e jornalista Wilson Holanda Lima Verde era amigo pessoal do médico e político Dr. Gouvêa. Por inúmeras ocasiões usufruiu de sua honrosa e agradável companhia. Numa delas, na companhia do também escritor Francisco Alcântara Nogueira, ficaram os três tecendo e consumindo informações em mais de 12 horas de conversa. Iniciaram a conversa às 10h e só pararam às 22h.
Wilson Lima Verde lembrou a repercussão da morte do amigo. “Foi o enterro que já vi mais gente, aqui, um dia em que vi muita gente chorar”. O jornalista lembra que recebeu a notícia do falecimento do amigo por volta das 6h30. “Fiquei chocado ao receber aquela notícia. Wilson Lima Verde citou os dois médicos que estavam com o amigo em seu leito de partida: Dr. Gilson de Souza Oliveira, cardiologista, e o Dr. Humberto Gouvêa, seu sobrinho e médico também. Naquele momento, minuto antes de falecer, Dr. Gouvêa ainda teve a lucidez de entregar sua obra mais importante, o Hospital Santo Antônio dos Pobres, para o sobrinho tomar de conta. Teria Dr. Gouvêa pronunciado a própria morte ao expressar a frase: “Meu caso não tem jeito”, para o médico cardiologista que o assistia.
Na concepção do jornalista, um político do naipe de Dr. Gouvêa é muito difícil, porque só ele conseguia ser ouvido por todos os partidos, incluindo aliados e adversários. “Era um homem público fantástico, como político, extraordinário, como médico, impressionante o olho clínico do Gouvêa”, frisou.
O jornalista que lembrou que quando Dr. Gouvêa chegou a Iguatu, ao se firmar aqui para fazer carreira como médico, e ao ingressar na vida pública como gestor elencou três preocupações essenciais: saúde, educação e infraestrutura, com abertura de estradas, construção de escolas, Hospital Santo Antônio dos Pobres e porque não lembrar a obra da estrada de ferro, que é do mesmo período.
“Fez muito bem!”. Esta teria sido a frase pronunciada pelo presidente Getúlio Vargas, ao visitar a obra do Hospital Santo Antônio, quando de sua passagem por Iguatu. Dr. Gouvêa estava preocupado porque havia apanhado pedras da obra federal da estrada de ferro, para usar no alicerce do Hospital Santo Antônio dos Pobres. Depois de receber o aval do Presidente, Dr. Gouvêa mandou reproduzir a frase numa das paredes do hospital.
Conforme Wilson Lima Verde, foi o prefeito da história de Iguatu que mais vezes foi recebido pelos mandatários maiores do país. Esteve com os presidentes Getúlio Vargas, (em mais de uma ocasião), Juscelino Kubistchek e Eurico Gaspar Dutra. Juscelino Kubistchek também visitou o Hospital Santo Antônio dos Pobres, conforme Wilson Lima Verde.
“Você me mata de rir, doutor”
O escritor iguatuense Sílvio Holanda Amaro (saudosa memória) publicou em outubro de 1981 o livro “Você me mata de rir, doutor”, uma coletânea de estórias jocosas cujo personagem principal é o médico Dr. Gouvêa. Pela leveza dos textos e o tom bem-humorado de cada anedota, o livro fez o maior sucesso entre os leitores.
Na época, o escritor fez um minucioso trabalho de pesquisa sobre o lado bem-humorado de Dr. Gouvêa, suas tiradas ríspidas com aqueles que o procuravam e o seu jeito único de ter sempre uma resposta na ponta da língua para qualquer assunto. Em nota no rodapé do livro, o escritor relatou: “Esta presente coletânea foi elaborada através de depoimentos concretos de pessoas que conviveram de perto com a ilustre figura de Dr. Gouvêa. Traduz, procurando ser fiel aos fatos, com clareza e sem deturpações, o espírito e o senso de humor político, do “doutor’, do homem do campo, da cidade e de todos. Seria uma injustiça, pois, não passar para o papel, as coisas boas de ouvir e de contar, do “Mago de Iguatu”, como costumava chamar o seu amigo Getúlio Vargas. Por isso é que peço ao Dr. Gouvêa, em qual estrela estiver, permissão para usar seu bisturi, rasgar o tempo e trazer de volta as suas gostosas peraltices de gente grande e de outros dias”.
Em outro trecho de nota no livro, Sílvio Holanda completa: “Cinquenta anos de medicina, política e liderança, sim. Cinquenta anos de humor. Dr. Gouvêa tinha o dom de fazer cócegas com as palavras. Tudo que dizia era engraçado. Quem teve o privilégio de o conhecer que o diga. Ninguém escapava das piadas de Dr. Gouvêa”.
Muitas das estórias narradas por Sílvio foram publicadas neste periódico numa coluna assinada pelo também escritor Giovani Oliveira, entusiasta do trabalho de Sílvio, e um divulgador da obra “Você me mata de rir, doutor”.
Sílvio Holanda Amaro faleceu em 13 de abril de 1997. O livro é uma de suas obras de maior repercussão no meio do público leitor.
Sérgio Holanda Amaro, um dos quatro irmãos de Sílvio, está publicando numa página “Conterrâneos de Iguatu”, no Facebook, os textos do livro, com cada estória, e segundo ele, os internautas estão amando a ideia.
Os irmãos Holanda Amaro, Sílvio, Sérgio, Sávio, Silvana e Pedro Sérvulo, do casal Joaquim Edilmar Amaro da Silva e Aldenice Holanda Silva (saudosa memória), viveram e moraram em Iguatu, num dos endereços da Praça da Matriz. A convivência com as pessoas, ouvindo as estórias, conhecendo o universo bem-humorado de Dr. Gouvêa, muito provavelmente, foi a essência da inspiração para o menino Sílvio nutrir a ideia de escrever, criar e publicar o “Você me mata de rir, doutor”.
Sérgio selecionou abaixo as estórias do livro para esta publicação, como forma de homenagear o autor e lembrar o personagem principal das narrativas.
Doença do mundo: “Capim Fino, que foi um zelador de veículos da cidade de Dr. Gouvêa, chegou meio sem jeito no consultório do clínico. Numa de suas rondas pelas galerias do amor de Iguatu, que fica na parte mais alta do lugar, contraíra doença venérea e estava encabulado de dizer ao médico.
– Doutô, tô com “doença do mundo”.
– De qual mundo, meu santo? – quis saber Dr. Gouvêa.
– O lá de cima – explicou.
O clínico passou a medicação e uma dieta. Capim Fino quis entender melhor a respeito do que podia se alimentar.
– Doutô, e bicho de pena eu posso comer?
– Está louco – respondeu Dr. Gouvêa. Se bicho de cabelo já lhe deixou assim, imagine de pena.
Cuspida caipira: Gervásio Catolé, uma figura de uma santa ignorância de outros carnavais, conversava com o Dr. Gouvêa e ao mesmo tempo cuspia no chão.
O médico, educadamente, vendo aquele ato anti-higiênico, colocava a escarradeira sempre no local onde o homem havia cuspido. Este cuspia em outro lugar. Dr. Gouvêa repetia o processo. Gervásio Catolé sempre escarrando fora. Depois de muitas cuspidas e notando aquele gesto contínuo do clinico, o homem se impacientou e disse:
– Doutô Gouvêa, o senhor tire esse troço do meio senão acabo cuspindo dentro.
O último forró em Iguatu: O Forró da Sociedade dos Carreteiros, que ficava perto da residência do Dr. Gouvêa, estava pra lá de animado. O sanfoneiro, Mestre Cazuza, sacudia o fole e mostrava que era bom nos “oito baixos”.
Porém, a festa já entrava pela madrugada e passava da hora e dos limites. Dr Gouvêa, em casa, não conseguia dormir, devido ao barulho festivo. Irritou-se, mais ainda, quando o Mestre Cazuza atacou de “Vassourinha” frevo muito usado em tempo de política para, mudando-se a letra, fazer deboches.
O político chamou um guarda noturno e deu uma ordem para o sanfoneiro acabar com aquilo. O vigilante, que não ia com a cara do mestre Cazuza, por causa de uma velha rixa, resolveu inverter as bolas:
– Mestre, Dr. Gouvêa pediu para o senhor dar o bis.
E o sanfoneiro, pelo microfone:
– A pedido do Dr. Gouvêa, é com prazer que toco novamente “Vassourinha”.
Dizem que Mestre Cazuza deu os últimos acordes na cadeia.
Pra lá de banho turco: Uma tremenda gripe levou um agricultor de Suassurana, distrito de Iguatu, a consultar-se com o Dr. Gouvêa. Depois de ser receitado, o caipira perguntou:
– Doutô, faz mal tomar banho com catarro?
Dr. Gouvêa respondeu:
– É muito seboso, mas pode tomar.
Um gênio da Graça – Por Giovani Oliveira
Além de médico, um humanista, além de líder político. Dr. Gouvêa incorporava a sua verve, a sua brilhante presença de espírito, transformando o seu cotidiano numa verdadeira fábrica de gargalhadas. Quando o querido Sílvio Holanda Amaro me convidou para produzir “Você me mata de rir, doutor”, uma obra que retrata com maestria o talento de Sílvio, me vi diante de uma fonte inesgotável de humor. Quantas histórias hilárias, desse grande ser humano que foi Dr. Gouvêa, que, segundo Sílvio, era o Mago de Iguatu.
Dentre inúmeras histórias engraçadas escolhemos uma para capa, que o Mino, outro grande talento, fez com tanta arte.
A história é o seguinte:
“O ano era 1958, Iguatu sofria com uma das maiores secas de sua história. Dr. Gouvêa foi ao palácio do Catete, na cidade do Rio de Janeiro, à época capital do país. Lá chegando, foi recebido pelo Chefe de Gabinete do Presidente Juscelino. Enquanto esperava a audiência, o Chefe de Gabinete entabulou conversa com o nosso herói.
-Dr. Gouvêa, é verdade que a seca lá em Iguatu é grande?
Dr. Gouvêa:
– Sim, estamos passando por uma seca terrível. Não chove faz tempo.
– Se não chove, consequentemente não tem água. E como é que vocês tomam banho?
– Nu. – Dr. Gouvêa respondeu secamente.”
Entretanto, a maior qualidade desse grande ser humano era a sua devoção pelos pobres.
Dr. Manoel Carlos de Gouvêa – Inteligente, ousado, filantropo e destemido Por José Hilton Montenegro
Muitos já escreveram sobre o colendo esculápio Dr. Manoel Carlos de Gouvêa, sergipano de nascimento e iguatuense por opção. A sua trajetória foi tema do livro da professora Francisca Aureny Alves Bezerra que, com habilidade, dissecou os seus feitos e as suas lutas. Mas os grandes, os arautos que fizeram a história são imortais, possuem fontes inesgotáveis de exemplos e de mistérios a serem pesquisados e revelados.
Dr. Gouvêa aqui desembarcou na estação da estrada de ferro, em 1920, aos 29 anos de idade, para desempenhar, na terra da Telha, a profissão de médico. Jovem, inteligente e irrequieto, não demorou para conquistar boa clientela e, também, não demorou para perceber a falta de infraestrutura e a calamitosa saúde pública do município de Iguatu.
O estado sanitário e a falta de assistência médica da população da cidade de Iguatu, na década de 1920, eram deveras preocupantes. O jovem médico Gouvêa, envolto no sentimento altruísta, não tardou para agir e, em 1923, idealizou a construção de um grande hospital para assistir o povo sofrido e desamparado de Iguatu e de toda a região fronteiriça ao município. Conseguiu adeptos e apoio para pôr em prática o ousado projeto da construção do hospital, mas, quando os inúmeros obstáculos foram surgindo, o visionário Gouvêa, praticamente, ficou só. Com recursos insuficientes e com o desânimo dos que o apoiavam, o intento de edificar o prédio hospitalar estava condenado ao fracasso. Assim como a fênix, Dr. Gouvêa encontrou força e coragem e lançou, em 1924, a pedra fundamental do magnânimo edifício do Hospital de Santo Antônio dos Pobres, que, por mais de cinquenta anos, serviu de acolhimento aos enfermos de Iguatu e de outras paragens.
Dr. Manoel Carlos de Gouvêa não se limitou a resolver somente o infortúnio da assistência médica dos iguatuenses; foi além, clamou por melhorias sanitárias junto ao Poder Executivo e Legislativo do Município. Ele sabia que a saúde pública e a prevenção eram tão importantes quanto à assistência ao paciente.
O jovem discípulo de Hipócrates passou a ser observado na cidade com admiração, respeito e, até mesmo, como esperança do povo pobre por dias melhores. Não tardou para receber conselhos e incentivos, objetivando o ingresso na vida pública. A sua vocação, o seu sacerdócio era a medicina, mas o sentimento filantropo que o envolvia e diante dos problemas gerais do município de Iguatu fez aflorar, gradativamente, em Dr. Manoel Carlos de Gouvêa, o interesse pela política. Sentiu-se intimado pela sua consciência a colaborar, a lutar por dias melhores por aqueles que o acolheram de braços abertos, os iguatuenses.
Em 1926, decidiu disputar o cargo de prefeito de Iguatu. Obteve apoio de caciques da política iguatuense e, também, enfrentou um forte oponente, o industrial Octaviano Benevides, que outrora havia sido o primeiro a incentivar Gouvêa a entrar na política. Pleito conturbado que foi resolvido a favor de Dr. Gouvêa nos tribunais da Capital. O médico, ao assumir o cargo maior do município, revelou-se um exímio administrador e um intransigente guardião do dinheiro público. Implantou, imediatamente, normas para melhorar o estado sanitário do mercado público, construção de matadouro modelo, edificação de um mercado só para o comércio de carne, proibição de animais soltos nas ruas, proibição de criação de suínos nos quintais das casas, fundação de escolas etc. Os munícipes sentiram, sobremodo, o impacto positivo do novo gestor ao ponto de o mesmo não enfrentar opositor nas eleições de 1928. Gouvêa realinhou a administração de Iguatu à altura das gestões das grandes cidades do país.
O intrépido Gouvêa, há poucos anos residindo em Iguatu, fundou hospital, foi eleito prefeito duas vezes, enfrentou sérias divergências entre partidários e oposição que não alcançavam as suas inovações etc. Em 1929, com o apoio do presidente do Estado do Ceará, seu ex-professor e amigo, o iguatuense Dr. José Carlos de Matos Peixoto, foi eleito Deputado Estadual. Na casa legislativa, não fez diferente: tornou-se respeitado pelas posições sérias e coerentes; travou embates acalorados em defesa de Iguatu, haja vista o seu empenho, nessa casa, em defesa dos limites geográficos do município de Iguatu. Ressaltamos que a legislação eleitoral da época permitia o exercício, concomitante, de prefeito e deputado. Foi ele grande prefeito e célebre deputado.
Em 1930, com o advento da revolução que alçou Getúlio Vargas ao poder, Dr. Manoel Carlos de Gouvêa perdeu os mandatos, recolheu-se, temporariamente, das atividades políticas para se dedicar, com maior intensidade, ao Hospital de Santo Antônio dos Pobres. Em 1932, empenhou-se incansavelmente no atendimento às vítimas da febre tifoide que alastrou os desnutridos da seca. Em 1935, a tuberculose se propagou em Iguatu e, mais uma vez, o devotado médico socorreu as vítimas, conseguiu, em Fortaleza, medicamentos e internamentos para os mais debilitados.
Em 1935, voltou à prefeitura, onde permaneceu até 1945, período esse de muitas realizações e de muitos embates políticos. Em 1947, retornou à Assembleia Legislativa. Em 1958, disputou as eleições para prefeito de Iguatu, tendo enfrentado o colega médico e ex-prefeito Dr. Agenor Gomes de Araújo. Foi vitorioso, administrou o município pela última vez (gestão 1959/1962) com o mesmo denodo, altivez e dedicação empreendidos nas gestões anteriores.
O incansável prestador de serviços voluntários; o médico altruísta; o político honesto, inovador e rígido; o líder nato; o pai da pobreza partiu para a eternidade nas primeiras horas do dia 6 de janeiro de 1970. O Iguatu chorou, o Ceará entristeceu, e o Brasil reverenciou esse grande luzeiro, Dr. Manoel Carlos de Gouvêa.
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