Homens e mulheres indispensáveis

08/06/2024

Tempos atrás escrevi neste espaço sobre pessoas, artistas o mais das vezes, que admiramos para além de suas obras. Desnecessário evidenciar, neste caso, que essa admiração terá nascido da vivência com aquilo que produziram esteticamente: livros, filmes, músicas, quadros etc., que marcaram nossa vida, que tocaram fundo em escaninho especial do coração, o que, numa perspectiva da filosofia da arte, na Estética, para ser mais preciso, definimos como “emoção estética”.

Refiro-me a um sentimento que se estende à figura do artista como homem, pelo que, da distância de simples fã, é-me possível conhecer. São deduções tiradas das entrevistas que concedem, das reportagens sérias que lemos sobre suas vidas pessoais e, de uma forma talvez mais pertinente, de como se apresentam em público. De como se dão a ver.

Sob este aspecto, vale ressaltar que todo artista tem uma postura, uma atitude em cena ou fora dela, que o diferencia, fazendo dele (ou dela) um ser único, inconfundível, dotado de existência singular.

Disse isso, noutra chave, para falar, se não me engano, do compositor, escritor e produtor musical Nelson Mota. Não, minto. Essa série, digamos assim, teve início com um texto anterior sobre o pianista Nelson Freire.

Falei de sua doçura, sua elegância, de como conduziu sua vida e sua arte emblematicamente bem. Enfim, das pequenas coisas que me foi possível saber do cidadão, nunca distinguindo, por completo, o pianista e regente do cidadão, os dois, aos olhos do admirador, igualmente notáveis.

É nessa linha que gostaria de voltar a falar um pouco de outro desses homens e mulheres artistas que me fizeram, por tantas vezes, sentar diante do computador para tornar público esse afeto para o qual, na falta da palavra exata, chamarei aqui de “empático”, isto é, essa relação sentimental com o outro que resulta numa experiência de alteridade que torna próximo, o distante. Carinho? Vá lá, carinho.

É o que sinto por certos homens ou mulheres artistas que me tocaram a alma, como disse, para muito além do fizeram enquanto escritores, atores ou atrizes, músicos, intelectuais etc. Como gente, é o que quero dizer.

Ocorre-me lembrar, no instante em que escrevo esta coluna, de nomes como os de Fernanda Montenegro, Chico Buarque de Holanda, Milton Hatoum, Lilia Schwarcz, Silviano Santiago, Aderbal Freire Filho (falecido), e tantos e tantos outros.

Há muito tempo acompanho, mesmo sem jamais sequer tê-lo visto pessoalmente, “assim de pegar”, como disse Drummond sobre Guimarães Rosa, o pianista e maestro João Carlos Martins, de quem li meses atrás uma autobiografia sobre a qual já escrevi aqui mesmo, neste espaço. Agora, embevecido, estou para concluir a leitura de uma biografia dele que recomendo com todo o meu entusiasmo: “O Indomável, João Carlos Martins entre som e silêncio”, assinada pelo premiadíssimo jornalista (e músico) Jamil Chade.

O livro, pequeno do ponto de vista volumétrico, acaba de sair pela Editora Record, e é de fato muito mais que mais uma biografia de um artista extraordinário. Isso porque Chade não se propôs a idolatrar o biografado (coisa de resto recorrente em trabalhos do gênero), o que, tendo em vista a dimensão humana e artística de João Carlos Martins, era o esperado. Não, o livro traz ao leitor um homem verdadeiro, focalizado nos limites do humano de que nos falou Nietzsche, com seus muitos e imensuráveis triunfos, mas, também, com suas falhas, suas imperfeições, seus vacilos e titubeios, e traços de caráter nunca capazes de diminuir a real grandeza desse artista e homem extraordinário chamado João Carlos Martins.

Se ao leitor interessa mais as qualidades do originalíssimo e grande intérprete de J. S. Bach, dos maiores de que se tem notícia até hoje, o livro é uma raridade. Sob este aspecto, por exemplo, poderá ouvir as mais importantes peças e gravações originais executadas pelo próprio João Carlos Martins, citadas ao longo da biografia, bastando para isso aproximar a câmera do celular do código QR no início de cada capítulo. Uma beleza.

Mas se ao leitor interessa conhecer o outro lado da vida do pianista e maestro, histórias impensáveis nas quais esteve envolvido, sua passagem pela política, sua simpatia pela Revolução Cubana, e outras excentricidades, as cirurgias a que foi submetido na tentativa de poder voltar a tocar piano, depois da doença incapacitante, seus amores e conquistas, enfim, sua trajetória desenhada pelo sucesso consagrador, e o sofrimento mais dilacerante, “O Indomável, João Carlos Martins entre som e silêncio” é leitura mais que recomendável.

Mas o que me propus dizer, e o espaço exíguo da coluna não me permite fazê-lo como gostaria, é que, num tempo de homens partidos, como afirmou o poeta há pouco referido, é reconfortante lembrar que ainda existem seres assim, como João Carlos Martins, que despertam em nós mais que a admiração pelo que fazem artisticamente, e que já é imenso, mas a quem dedicamos o desinteressado ‘afeto empático’, pelo exemplo, pelo que existe de bom no mais íntimo de suas individualidades. Homens e mulheres indispensáveis.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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