Humberto morreu de amor

03/01/2022

A atividade intelectual e o gosto pelo jornalismo levaram-me a ter o hábito de entrevistar pessoas interessantes, algumas delas famosas. Que me lembre, agora, entrevistei os escritores Jorge Amado, Zélia Gattai, Moreira Campos; o filósofo Edgar Morin; o cantor Raimundo Fagner, mais de uma vez; os cineastas Walter Lima Jr. e Paulo Cesar Saraceni; o educador Moacir Gadotti, os políticos Ciro Gomes e Luiz Inácio Lula da Silva, entre muitos outros. Mas foi a entrevista com o cantor e compositor Luiz Gonzaga que mais me tocou, pelo desprendimento e informalidade do que se tornou antes uma conversa demorada que uma entrevista propriamente dita com um dos artistas geniais do país.

Era outubro, novembro, não me lembro bem, mas o ano com certeza era 1987, já bem perto da morte de Gonzagão, ocorrida em agosto de 1989.

Em Iguatu, ele era hóspede do médico Hildernando Bezerra. De manhã, ainda à mesa do café, contando com a presença da saudosa Marlene Teixeira, primeira mulher a fazer rádio na cidade e incansável estudiosa da obra de Humberto, começamos Luiz Gonzaga e eu uma conversa, como disse, demorada, sobre música popular brasileira, a carreira esplêndida do compositor de Asa Branca e, principalmente, a convivência com seu parceiro iguatuense. Hildernando, o anfitrião, aqui e ali intervinha com ponderações curiosas sobre o tema da conversa.

Gonzagão discorria com um jeito bem nordestino de ser sobre o percurso que percorrera desde o início de sua carreira, ainda entre os cáctus e cipoais do sertão, até a consagração, que, na sua humildade peculiar, em momento algum assumiria com vaidade perante os entrevistadores. Falava das circunstâncias em que compusera uma e outra canção, das parcerias, do pai Januário e, acima de tudo, de sua amizade com Humberto.

Sabendo-me vereador e autor de um projeto de lei que instituiria o Museu Iguatuense da Imagem e do Som, a uma dada altura da entrevista, sem que eu saiba o porquê, Gonzaga assume comigo o curioso compromisso: – “Assim que o museu for inaugurado, mando para seu acervo o primeiro disco de ouro que eu e Humberto ganhamos com Asa Branca.” Todos aplaudiram e o burburinho era tão grande que tive de interromper a entrevista. Foi aí que Luiz Gonzaga fez a afirmação premonitória: – “Guarde a fita [da entrevista] que, se eu tiver morrido, você mostra pro [o barulho de conversas paralelas e ruídos de talheres impedem a compreensão do que diz] e volta com o disco debaixo do braço.” Suponho que tenha dito o nome do filho Gonzaguinha, que, ironicamente, morreria em 1991, num desastre de carro.

Marlene Teixeira, que tinha uma bela voz, traz com ela uma música inédita de Humberto Teixeira e a cantarola para Gonzagão, que fica em silêncio por um momento, os olhos nitidamente marejados, e faz a afirmação que ser tornaria conhecida: – “Humberto morreu de amor!”

Anos depois, falei sobre o assunto com a atriz Denise Dumont, filha de Humberto Teixeira, que viera ao Ceará para lançamento de um projeto que tinha por objetivo resgatar a importante presença do pai no contexto da MPB. Sempre muito reticente em relação à vida amorosa de Humberto, por razões que sabemos, apenas esboçou sobre o assunto um sorriso à Mona Lisa. E repetiu: – “Humberto morreu de amor!”

Humberto Cavalcanti Teixeira faria nessa quarta-feira, 5 de janeiro, 107 anos. 43 anos decorridos desde a sua morte, ocorrida em 3 de outubro de 1979, no Rio de Janeiro, sua obra grandiosa ainda está por se tornar objeto de estudo que o faça ocupar, definitivamente, a posição que merece no panteão dos compositores geniais da MPB.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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