Rastejei até o quarto vizinho, onde teria, através da janela, um maior campo de visão. Poderia, ali, planejar melhor a forma de agir sobre o maldito e inconsequente invasor! Minha surpresa foi tamanha quando vi a criatura flutuar por entre a baixa vegetação do meu quintal! Seria um truque planejado pelo ser, que imaginava estar sendo observado e, por isso, quis intimidar-me com a inusitada cena?
Mas, afinal, o que seria aquilo, meu Deus?! Ainda não sabia se tal criatura era um ser do submundo ou um impostor se passando por tal. Percebi somente que seus olhos não mais tinham aquele brilho amarelado, quase dourado de antes. Para minha sorte, encontrei, no quarto, uma esquecida garrafa de vodka ainda contendo pouco menos da metade da bebida! Estava salvo! O álcool estimula a coragem! Daí a razão de fazermos tantas merdas enquanto ébrios! A besta será confrontada em meio ao torpor alcoólico!
O ser se esgueirou de repente em meio ao pequeno matagal e reapareceu bem em frente a fresta de onde eu o espiava. Seus olhos malditos fitaram os meus. A criatura falou, sentenciando: ‘‘Não voltes ao passado! Nunca mais será como antes!’’ Petrifiquei-me, por dois motivos. O primeiro: o susto pelo surgimento abrupto da criatura na fresta. O segundo: o inusitado conselho.
O que tudo aquilo significava, afinal? Aquilo… aquilo era um anjo ou um demônio? Um ser de luz ou das trevas? Um conselheiro ou um maldizente? Estaria eu sendo abençoado ou amaldiçoado naquelas poucas palavras que soavam, ao mesmo tempo, como conselho e punição? Eu precisava beber mais vodka; isso talvez desencadeasse uma linha de raciocínio elucidativa.
Nada eu respondi à criatura. Apenas ecoava em minha mente aquela frase: ‘‘Não voltes ao passado! Nunca mais será como antes!’’ Automaticamente, lembrei-me do ‘‘Nevermore’’, do Poe, clássico poema do pai do macabro. Estaria eu vivendo algo parecido? De repente, ignorando completamente a presença do ser medonho lá fora, comecei a divagar…
‘‘Bêbado, pra variar, mal consigo raciocinar direito sobre a condição a qual me encontro. Estou deitado e o mundo parece pesar miseravelmente sobre minha débil cabeça. Mesmo em meio ao devaneio enganador, eu sabia o que deveria ou não fazer. Mas uma coisa é a prudência do bom senso, outra é o desejo, pai de toda estupidez humana. Sim, quando merdas acontecem, elas são sempre geradas, invariavelmente, pelo paterno desejo desenfreado.
Ocorreu-me a ‘‘brilhante’’ ideia: continuar bebendo! A fim de afogar os pensamentos tortuosos, bebi e fumei até cair…. aliás, pensava estar caindo, mas não. Ao invés disso, a sede só aumentou, os pensamentos se intensificavam e o nada do que era aquela noite dos horrores se fez mais leve, mais palpável. Lembrei-me de um amigo e sua máxima: ‘‘Sabe, amigo, o coração de um homem é como o convés de um navio: cheio de rachaduras.’’ E tal aforismo, como no dia em que o ouvi pela primeira vez, neste momento, surtiu o mesmo efeito. A sensação de que somos demasiadamente vulneráveis e impotentes ante nós mesmos e aos fatores externos a nós.
Tenho por certo de que já não faço o que quero, mas o que minha alma ordena, grita, de forma latente, mas que se faz, de quando em quando, emergir à superfície, como o leviatã bíblico ou como o leviatã de Hobbes. Trata-se de um pacto secreto, oriundo de desejos gerados no fundo do cerne, que se contrapõem à lucidez. É quando rasga-se o véu da sanidade e invade a vida, deixando um rastro de sentimentos bons e ruins. Um caos, um vórtice incontrolável, uma simbiose de desejos incongruentes, ainda que imbricados.’’
Voltei do transe. Suado e atordoado, abro, sem pensar, a porta que dá acesso ao quintal. Eu teria de matar aquele ser torturador dos meus pensamentos latentes.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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