Entre os muitos agentes causadores da degeneração da República, tomando-se o termo em sua etimologia, como sinônimo de coisa pública, a corrupção aparece como o mais grave na pauta do debate contemporâneo. Ela nasce dos vícios que levam o homem a embaralhar interesses, misturando o interesse pessoal com o interesse coletivo, este sendo sobrepujado por aquele com a motivação de que se garantam a fortuna e os privilégios de toda ordem na perspectiva do indivíduo e da familiaridade, das associações criminosas e dos grupos partidários, na contramão do bem comum.
Assim pensou Maquiavel (1469-1527), para quem a sobreposição do interesse individual ao interesse coletivo é a razão máxima da perda ou alteração das qualidades da República. Esta se degenera quando o homem, a partir do surgimento do que se convencionou chamar de modernidade, coloca os seus desejos e necessidade de satisfação pessoal (e dos que lhe são íntimos) em primeiro plano, desconsiderando o interesse coletivo e o bem comum.
A essa altura, é preciso que se esclareça o que se deve entender por ‘bem comum’. Sejamos didáticos: o bem comum se constitui da soma de valores que nascem da relação do interesse individual com o interesse da sociedade. Na República, cabe às instituições organizar essa relação, impedindo que o interesse individual se contraponha ao interesse coletivo, assegurando a todos, assim, o bem, o direito e o atendimento das necessidades comuns.
Ao longo do tempo, pensadores de diferentes espectros ideológicos dedicaram-se ao tema na busca de compreender essa relação em toda a sua complexidade; e de tornar possível sua articulação na perspectiva da sociedade moderna.
Sob este aspecto, são notáveis as contribuições advindas de pensadores distintos e discordantes em questões de fundo. Entre os de formação liberal, façamos-lhe os ajustes devidos, destaca-se Alexis de Tocqueville (1805-59), um olhar profundo sobre o embaralhamento dos interesses na sociedade desde que o homem moderno, curvado ao canto das sereias das conquistas da tecnologia, dos privilégios e da lógica perversa do capitalismo, inverteu valores na ânsia de ver atendidos os seus desejos e do grupo a que pertence na perspectiva dos laços íntimos, de familiaridade, de grupo ou de facção política.
Para Tocqueville, está no seu livro magno, A Democracia na América, de 1840 (tomo como referência a edição em texto integral da Edipro, 2019, com tradução de Julia da Rosa Simões), capítulo 8 do terceiro tomo, no que define como “doutrina do interesse compreendido”, é possível que interesse particular e interesse coletivo caminhem lado a lado, embora preservadas as suas individualidades. Considerando o interesse particular como o “único ponto imóvel do coração”, expressão com que tenciona evidenciar que todos os homens são portadores de interesses pessoais, o pensador francês estabelece no plano do interesse particular diferenças entre “individualismo” e “egoísmo”. Para ele, o egoísmo é um “instinto cego” que leva o homem a não impor freios a seus desejos de satisfação pessoal, a não medir meios com que possa fazer imperar o seu egotismo, e os privilégios que assegurem o seu domínio sobre os demais. O individualismo, por sua vez, pode ser compreendido como um alargamento desse instinto, pelo qual o homem se distancia dos outros a fim de tirar proveito pessoal e/ou beneficiar aqueles que lhe são próximos por vínculos de consanguinidade ou identificação de pensamento (de classe, acrescento), ideias e irrefreada necessidade de ver atendidos os seus desejos e asseguradas suas vantagens.
A “doutrina do interesse compreendido”, na perspectiva da sociedade moderna e considerando-se o embasamento liberal que a sustenta (e que é, em grande parte, a causa dos vícios e desvios que intenta combater) mantém a sua validade como contribuição para o debate contemporâneo em torno das variadas ameaças à República. Mas é preciso ir além do que se observa aqui, uma vez que o livro de Tocqueville, em que pese tratar-se de um clássico no campo das ciências políticas, constitui um tipo intelectualmente refinado de exaltação ao modelo democrático norte-americano. Enviado aos Estados Unidos pelo governo francês, em 1831, a fim de realizar uma pesquisa sobre o sistema prisional americano, Tocqueville produz o relatório de que se originará o texto de A Democracia na América, pautando-se por um certo deslumbramento com aquilo que vê no país visitado, o que impõe aos entusiastas de sua notável defesa da liberdade e da democracia (e dos meios que apontam para a construção de uma sociedade virtuosa) um certo cuidado e uma boa dose de parcimônia. Nada que diminua a importância do livro, como observado aqui, uma das obras fundamentais para o exame da liberdade, da democracia e dos problemas que os afetam.
Contrariando a presunção do Estado como instância neutra, Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), por sua vez, professaram no Manifesto Comunista, de 1848, que “o Estado moderno não passa de um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. A História confirmaria isso, uma vez que o capitalismo, mais que qualquer outro modelo de sociedade, corromperia ao longo do tempo, como afirmara Marx, tanto a burguesia quanto o operariado.
No Brasil, hoje e sempre, é da dessa confusão entre os interesses, da mistura do público e do privado, que surgem os maiores vícios que corrompem a República e fazem do país um dos mais iníquos do ponto de vista democrático, considerando-se, nesta perspectiva, que não é verdadeiramente democrático um país em que impera, ad aeternum, a desigualdade que condena a condições sociais subumanas mais de dois terços de sua população. Sob este aspecto, são incontornáveis os números apontados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2018, acerca da concentração da renda no Brasil: a renda per capta dos 10% mais ricos é 32 vezes mais alta que a dos 40% mais pobres. O país ocupa, segundo o relatório Oxfam do mesmo ano, a nona posição entre os 189 mais desiguais do mundo. Mais de 25% de toda a renda nacional está concentrada nas mãos de 1% da população; e os 5% mais ricos possuem o equivalente ao que resta para 95% dos brasileiros.
Esta desigualdade materializa-se de forma mais abrangente e mais visível no que se define como ‘bem comum’, no direito à saúde, à educação, à moradia, ao saneamento básico, ao lazer etc., e que o discurso contra a corrupção (recorrente sempre que a direita vê ameaçados os seus privilégios) quase sempre tem colocado à margem do debate, como se um nada tivesse com o outro, a exemplo do que faz uma elite indefensável que se acumplicia a setores do Sistema Judiciário para derrubar governos populares e impedir que lideranças de esquerda possam concorrer ao processo sucessório presidencial, a exemplo do que ocorreu, entre 2016 e 2018, resultando na calamidade que é o atual governo.
P.S. Este texto terá continuidade numa segunda parte, que será publicada no próximo sábado.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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