Vira e mexe, leio ou ouço falar em “complexo do vira-latas”. Muitas vezes, num vezo que é bem brasileiro, usa-se a expressão sem o pleno domínio do seu significado. Coisa da onda, um tipo de modismo que não raro leva o falante a dizer tolices. Mas, afinal, o que é esse “complexo” ordinariamente atribuído ao brasileiro? De que cabeça iluminada terá nascido a expressão? Corresponde ela, de fato, à realidade? Somos os brasileiros portadores desse desvio de personalidade? Vamos ao histórico da malsinada expressão.
Era 1958. A seleção brasileira viajara para a Suécia onde disputaria a Copa do Mundo de Futebol. Sua classificação fora sofrida: 1 a 0 sobre o Peru. O país ainda vivia o trauma da derrota em 1950, em pleno Maracanã, resultado que levaria os brasileiros a desacreditarem de suas possibilidades em tudo que exigisse deles a confiança da vitória. Se viesse, ela, a vitória, era atribuída à benevolência dos anjos e dos deuses, obra do acaso, filha do talvez ou do quem sabe. Menos por nossos méritos.
Em meio a essa descrença visceral, contrapondo-se ao que parecia ser mesmo um consenso, o dramaturgo, romancista, contista e cronista pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues, profetizava o sucesso da canarinha em gramados europeus: “Eu acredito no brasileiro e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatural e agressivo”.
Para ele, não nos faltavam craques, nem competência técnica, nem inventividade estratégica. Nosso problema, dizia, era não ter confiança em nós mesmos, e tremer diante de qualquer adversário que, à maneira de Obdulio Varela, o nosso algoz em 50, nos fizesse cara feia: “Qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção — temos dons em excesso”.
Num lampejo de inspiração, coisa que jamais faltava a este exímio cronista (como dramaturgo é, hoje, quase uma unanimidade), referiu-se a esse sentimento de inferioridade, a essa incapacidade de agir com desassombro, a essa inépcia etc., com a expressão ainda hoje usada para definir um traço marcante da ‘identidade’ brasileira: Tínhamos o que chamou de “complexo de vira-latas”.
Mas a coisa não é tão simples assim. Diante de qualquer sucesso, a exemplo do que ocorre cada vez que conquistamos uma Copa do Mundo, esse sentimento de inferioridade, essa descrença mórbida e paralisante, como se num passe de mágica, transforma-se num ufanismo desregrado e ingênuo, à maneira do Conde Celso, e nos sentimos imbatíveis, “Sansões” empoderados até a raiz dos cabelos. Cresce a nossa autoestima, agiganta-se o nosso amor-próprio, a nossa utopia sem limites.
Nelson Rodrigues, ele mesmo a nos exaltar após a conquista da Jules Rimet: “Já ninguém mais tem vergonha de sua condição nacional”, afirma na crônica O Brasil em Campo, “e as moças nas ruas […] andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo não se julga mais um vira-lata. […] O brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas”.
Para o bem ou para o mal, mais adequado seria falar-se de um “complexo do pêndulo”, uma vez que nos é própria a ciclotimia inata, e, desde as origens mais remotas, estamos a balançar entre polos opostos, ora tocando o negativismo, ora a fé radiante; ora enlevados ao sabor das fantasias, ora mergulhados numa tristeza incurável. Mistura de Jeca Tatu e Peri, vamos cavalgando o dorso duro e escorregadio da História. Eis a nossa sina, até o sem-fim dos tempos.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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