Há pessoas com as quais sequer estivemos pessoalmente que se tornam ao longo dos anos objeto da nossa maior estima, despertando em nós um sentimento que se coloca entre a simples admiração e o afeto mais doce e mais terno.
Um quadro político, um professor, uma escritora, um ou uma artista, uma profissional do campo da medicina ou da educação, enfim, pessoas que demonstram em tudo que fazem mais que talento, algo não raro independente do caráter, da conduta ética, da qualidade técnica daquilo que produzem em termos rigorosamente objetivos enquanto profissionais. Não é sem razão que se tem discutido através dos tempos como separar a obra do seu autor, na linha do que ocorre, por exemplo, aos cineastas Woody Allen ou Roman Polanski, no meio cinematográfico, e, na filosofia, a Martin Heidegger, cujas obras são em muitos aspectos incontornáveis.
É o que sinto, para citar um caso particularmente exemplar do que afirmo, pelo maestro, compositor e instrumentista João Carlos Martins, cuja autobiografia, “João de A a Z”, acabo de ler com uma satisfação que extrapola a admiração que sempre nutri pela sua arte.
Em se tratando de João Carlos Martins, tanto quanto ao maestro, compositor e pianista, vejo o homem bom, correto, a figura amável de quem vive o sentido de humanidade em sua mais alta dimensão.
Não tendo tido o privilégio de conhecê-lo em pessoa, ler sua autobiografia (já lera antes pelo menos uma biografia), ajudou-me a cristalizar positivamente o que a sua presença cênica, no palco, ou suas entrevistas nos jornais e na tevê, sempre me sugeriram: trata-se de uma pessoa coberta de luz, se a imagem é mesmo capaz de traduzir o que quero evidenciar em relação a esse grande brasileiro.
Às vésperas de completar 80 anos, João Carlos Martins nos brinda com um livro de memórias e reflexão estética que vai muito além de uma simples autobiografia, pois que é lição que não se esgota o que diz do alto de sua humildade e sua irretocável compreensão dos valores fundamentais da existência humana.
Já na capa do belíssimo “João de A a Z” depara-se com a palavra a um só tempo doce e sábia de João, como a nos apontar, lanterna viva, as trilhas do que pretende essencial em suas memórias: “Não gostaria de ensinar ninguém, mas mostrar o que a vida me ensinou e aproveitar para dividir emoções, pois só sabe multiplicar aquele que aprende a dividir”.
Não vou dar spoiler, minha forma desalinhada de querer dividir emoções estéticas com o leitor, mas registro, a título de exemplo, o que nos diz sobre Johan Sebastian Bach, para que se tenha uma noção da beleza do livro: “Em alguns sonhos acho que nasci para tocar suas músicas — gravei suas obras completas para teclado. É meu ídolo máximo, um semideus, um canal de comunicação espiritual. Certamente tenho uma ligação espiritual com ele. Uma vez corrigi Pelé quando o rei disse que era a personificação de Beethoven no futebol. Na minha opinião ele era o Bach do futebol. Beethoven era Maradona, mas não era Bach. Bach foi o criador mais decisivo na exploração das potencialidades da música, como Pelé foi da bola”.
Assim, numa linguagem que é canto de sereia, João Carlos Martins, num dos mais sedutores capítulos de sua autobiografia, vai tecendo suas reflexões sobre a arte que o consagrou, construindo, como diz sobre o compositor alemão, “uma catedral que alcança a máxima grandiosidade, na beleza arquitetônica, na delicadeza dos detalhes, enfim, na proximidade de Deus”, que é mesmo aquilo que sua extraordinária humanidade nos sugere sempre que diante de nós. Viva João Carlos Martins, exemplo de generosidade e capacidade de superação.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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