Leite condensado, sangue e podridão

04/03/2023

Há quem já festeje o reencontro, depois dos anos de barbárie, como se a selvageria fosse coisa do passado. Ledo engano. Ainda sobrevoam nossas cabeças, como fantasmas insones, o ódio e a violência, nascidos da brutalidade do ex-presidente e de sua corriola.

Se é verdade que houve pequenos avanços, em maior porção como resultado da resistência democrática à tentativa de golpe do 8/1, as forças antagônicas se enfrentam no dia a dia dos brasileiros: humanismo e truculência; direitos e exploração; igualdade e supremacia; educação e grosseria, entre outras tantas dualidades.

E pensar que hoje (sexta-feira, 3 de março) se comemoram os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos…

Aquela que diz no seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (Cito de cor).

E ecoam nos meus olhos e ouvidos, o que li e ouvi sobre trabalhadores nordestinos mantidos em condições análogas à escravidão na colheita da uva no Rio Grande do Sul. O documento lançado pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Caxias do Sul é algo nojento, sórdido, e diz à perfeição em que país, infelizmente, ainda vivemos.

Como a querer justificar o injustificável, o órgão responsabiliza os programas de combate à fome, criados nos governos do PT, pela prática dos atos de exploração do trabalho humano a que estavam condenados homens nordestinos que ali buscavam sobreviver num país em que 33 milhões de pessoas vivem em situação de fome, onde passa dos 10 milhões o número de desempregados e 40 milhões ocupam-se em atividades informais.

O texto, subscrito por empresários da produção de vinho, é asqueroso em sua forma e seu conteúdo, materializando como pensa parte do empresariado nacional, os tais homens do agronegócio que davam apoio irrestrito ao ex-presidente, e que não mediram esforços para tomar no grito a eleição de Lula: “… há larga parcela da população com plenas condições produtivas que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade” (sic), diz o documento.

Para não falar, o que é infelizmente necessário, do pronunciamento do vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, contra os trabalhadores escravizados, em que propõe a contratação de argentinos como solução para os problemas de mão de obra no estado: “… limpos, educados, produtivos”, “diferentes dessa gente lá de cima (no mapa, o Nordeste), que nada faz além de bater tambor na praia”.

O discurso sórdido do fascista, como se vê, reproduz um tipo de preconceito que vai além da questão meramente trabalhista, mas escancara uma mentalidade dominante do agronegócio e recorrente na História, a que valoriza e exalta, como fez o moleque na tribuna, o trabalho de brancos imigrantes em detrimento dos negros que construíram este país debaixo de chicote e vara de ferro.

Em meio ao descalabro e à desfaçatez, é preciso que as instituições permaneçam atentas e atuantes, na linha do que têm feito nos últimos meses em favor da democracia, do restabelecimento do Estado de Direito e do combate aos fantasmas a que me referi acima, insones, ameaçadores e desejosos de voltar à cena da tragédia em que se alimentaram de rachadinhas, Viagra, leite condensado, sangue e podridão.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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