A semana que termina transcorreu com fatos importantes da vida cultural do país. Na terça 6, Cacilda Becker, maior e mais icônica figura do teatro brasileiro, faria cem anos. Na quarta 7, vítima da Covid-19, morreu Alfredo Bosi, expoente da crítica literária do país desde a morte de Antonio Cândido, em maio de 2017. Falemos um pouco dos dois.
Cacilda Becker Yáconis, paulista de Pirassununga, foi descoberta pelo crítico e professor de teatro Miroel Silveira, em Santos-SP, durante uma apresentação de “A Lenda de um Beijo”, a partir de uma performance da atriz, que contava, à época, 16 anos. Silveira, para quem Cacilda “possuía uma irradiação particular, de quase transcendência, que a destinava aos mais altos níveis da realização artística”, levaria a atriz para o Rio de Janeiro, onde, no Teatro do Estudante, a futura rainha das artes cênicas brasileiras daria os primeiros passos de uma trajetória brilhante, muito embora curta: Cacilda Becker morreu aos 48 anos, num entreatos do clássico Esperando Godot, do irlandês Samuel Beckett.
Para o renomado crítico teatral Sábato Magaldi (1927-2016), depois de 68 peças, dois filmes e algumas atuações na televisão, foi exatamente no papel de Estragon, na montagem realizada pela Companhia de Teatro Cacilda Becker, em 1968, com direção de Flávio Rangel, que a atriz atingiu o ponto mais elevado de sua extraordinária capacidade interpretativa. Em artigo publicado à época, Magaldi é afirmativo sobre isso: “A figura frágil, desajeitada, chapliniana, com a máscara clownesca, ilumina-se de uma vida interior e uma sabedoria que fazem de Estragon, talvez, o ponto mais alto da carreira de Cacilda e uma criação antológica em nosso palco”.
Ao lado de ser esse mito, essa figura estelar detentora de um brilho singular na constelação mais alta e mais prestigiada do teatro brasileiro, constituindo uma unanimidade entre profissionais, historiadores, críticos ou simples amantes do teatro, Cacilda Becker notabilizar-se-ia por sua militância nos movimentos de enfrentamento dos horrores da ditadura militar instalada no país com o golpe de 1964. Sua voz, calando a censura à liberdade de expressão artística, por exemplo, pode ser constatada num fato curioso ocorrido em 1968: protagonizando o espetáculo Feira Paulista de Opinião, a cujo texto a censura militar havia imposto 71 cortes, Cacilda recusou-se a cumprir a determinação autoritária interpretando na íntegra o texto original.
Para não falar de outros episódios, em que sobressaem a invasão e prisão do elenco da peça Roda Viva, no Teatro de Arena, a que se contrapôs com valente determinação, e as vezes em que bateu de frente com a repressão militar ao depor no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Grande Cacilda Becker.
Quanto a Alfredo Bosi…
Trata-se do mais rigoroso dos críticos de literatura brasileiros desde à morte de Antonio Cândido. Possuidor de um método de análise que se notabiliza pela fina compreensão dos componentes históricos da arte literária, sem perder de vista sua dimensão estética, Bosi escreveu muitas das obras consideradas fundamentais para o entendimento das artes contemporâneas do país. Entre esses, pela densidade e criteriosa perspectiva de análise, deve-se destacar O Ser e o Tempo da Poesia, Dialética da Colonização e o incontornável História Concisa da Literatura Brasileira.
Como Cacilda, Alfredo Bosi jamais abriu mão de suas convicções políticas, indo dos espaços acadêmicos à rua com a mesma desenvoltura, o mesmo espírito de luta e a mesma coragem de enfrentar toda e qualquer adversidade em favor de um país mais livre e mais justo.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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