Lições de literatura russa

02/10/2021

Em certa altura da “Live Conhecer Dostoiévski”, de que tive o prazer de participar a convite do sempre muito elegante Dr. Táki Cordas, na última segunda-feira 27, a pergunta a que todo dostoievskiano, cedo ou tarde, terá de responder: “O que dizer de Vladimir Nabokov sobre Dostoiévski?”

A indagação refere-se ao impiedoso juízo do autor de Lolita, no seu muito conhecido Lições de Literatura Russa, acerca do autor de Crime e Castigo, cuja tradução para o português pode ser lida em edição de 2015 pela Três Estrelas.

Na sequência de uma série de comentários que vimos publicando sobre Fiódor Dostoiévski, série esta que se estenderá até 11 de novembro, data em que o escritor russo contaria 200 anos, volto ao assunto na coluna de hoje.

Ao desembarcar nos Estados Unidos em 1940, Nabokov dedicou-se a ministrar uma série de cursos sobre a literatura de diferentes países, americana e russa entre os mais concorridos. O conteúdo desses cursos, como de praxe em se tratando de figuras notáveis no campo das letras, logo sairia em livros e causaria verdadeiro frissont mundo afora; muito, obviamente, pelas excêntricas análises, na linha do new criticism, levadas a efeito por Nabokov, em particular sobre Dostoiévski, a quem considera um escritor menor. Muito menor que todos os outros grandes nomes da literatura russa por ele examinados: Nikolai Gógol, Maksim Górki, Anton Tchekhov, Liev Tolstói e Ivan Turguêniev.

A crítica de Nabokov, aos olhos de qualquer mediano conhecedor de literatura, no entanto, ignora (intencionalmente) fundamentos teóricos básicos, constituindo, antes, um punhado de subjetivações que mais chamam a atenção do leitor para as qualidades que para os defeitos da obra de Dostoiévski.

Nesse sentido, por sinal, é que já no início do seu ensaio precipita-se a considerar o autor de O Idiota desprovido de atributos como “o de arte duradoura e do talento individual”, não esquecendo de ressaltar “lampejos de excelente humor, mas, infelizmente, separados por oceanos de platitudes literárias”.

Em seguida, mantendo-se à margem de qualquer fundamentação científica, a da psiquiatria por exemplo, ou fechando os olhos para registros policiais de fatos recorrentes na sociedade americana que o acolhera, após fugir da então União Soviética, realiza uma sinopse mal alinhavada de Crime e Castigo: “… Raskólnikov por alguma razão mata uma velha usurária e sua irmã.” , é como inicia sua análise de uma das obras-primas da literatura universal sem se dar ao trabalho de atentar para tudo o que, na narrativa, antecede o crime do ex-estudante atormentado, ser cindido a partir do que está implícito no próprio nome, como bem evidenciam os principais examinadores do romance: De Raskol-cisão.

Raskólnikov é, como recorrente no conjunto da obra de Dostoiévski, uma personagem dividida entre princípios éticos e aéticos. O crime hediondo cometido por ele, cujas motivações são expostas pelo narrador de forma clara, em que pese a complexidade do perfil psiquiátrico da personagem, é o resultado dessa ‘cisão’, do conflito interior de um homem profundamente contraditório, doentemente movido por emoções dialéticas: generoso, como na passagem em que se comove com a morte por atropelamento de um bêbado a cuja família pobre dedica-se em gestos de tocante solidariedade, a exemplo de doar-lhe seus últimos trocados, ou quando arrisca sua própria vida a fim de salvar crianças de um incêndio. Por outro lado, dedica-se a construir uma teoria filosófica que separa os homens em ordinários e extraordinários, sendo estes capazes de matar em nome de uma ideia ou de uma causa.

Colocada numa situação-limite, a que é conduzida com habilidade pelo autor da narrativa, a personagem-assassina irá expor isso ao confessar seu crime à Sônia, uma prostituta a quem, num lance de imenso significado filosófico da obra, cabe resgatar a humanidade de Raskólnikov. Demos a palavra à própria personagem: “Naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: sou um piolho, como todos, ou um homem? Posso ultrapassar (isto é, o limite) ou não?”

Essa teoria seria retomada emblematicamente por Dostoiévski em seu último romance, Os Irmãos Karamázov, numa das falas antológicas da personagem Ivan Karamázov, em que se antecipa à teoria do super-homem, de Nietzsche.

Mas Nabokov, na sua ânsia de desqualificar o escritor compatriota, do alto de sua arrogância analítica, julga falta de gosto de Dostoiévski o ritmo com que o ficcionista explora o que ele mesmo define como “pessoas que sofrem de complexos pré-freudianos” e “o hábito de se espojar nos trágicos infortúnios da dignidade humana”.

Quis o tempo, não muito depois do que afirma o ensaísta sobre Dostoiévski, que ele mesmo, Vladimir Nabokov, viesse a se consagrar como romancista ao escrever Lolita (1955), obra em que “por alguma razão” um obsessivo e cínico escritor de meia-idade tem os desejos mais agudos e incontroláveis por uma menina de 12 anos.

Depois de acusar Dostoiévski de tantas coisas improváveis, pelo menos não provadas por ele em suas lições de literatura russa, a exemplo do que faz sem meias-palavras ao rotulá-lo de imitador ou parodista, referindo-se a alguma influência recebida de Gógol, o que é natural e recorrente entre grandes autores, Nabokov curva-se a uma necessidade básica no que diz respeito à arte, a fim de reconhecer no autor de Recordações da Casa dos Mortos a verdadeira medida do gênio: “… o fato de que o mundo por ele criado é realmente seu, não existia antes (pelo menos na literatura), e, coisa ainda mais importante, foi construído de forma plausível”.

É preciso que se diga mais?

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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