Literatura e realidade

05/08/2023

Só mesmo numa cultura em que “bandido bom é bandido morto”, na linha do que professava Paulo Maluf, declarações rudimentares e tacanhas como as do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, sobre a chacina do Guarujá, podem ser objeto de aplausos e elogios exaltados nas redes sociais. Foram 16, por ora contados. Outros virão. Na sua grande maioria, gente pobre e preta, a exemplo do ajudante de pedreiro Layrton Fernandes da Cruz Vieira de Oliveira, 22, morto a tiros quando ainda dormia na casa de um amigo. Na “limpeza”, ainda mataram o cachorro da família.

O mesmo ocorreu a um indigente e a um garçom, Filipe do Nascimento, 22, que saíra de casa para comprar macarrão. Um outro teve seu filho de poucos meses arrancado do colo antes de ser executado. A chacina, a maior desde os 111 do Carandiru, como disse, deixa o mandatário paulista “extremamente satisfeito”, pois que o fortalece em sua pretensão de candidatar-se a presidente em 2026, arrebanhando o apoio do bolsonarismo raiz, claro. Essa gente que faz arminha com os dedos e exulta de contentamento ao ver o sangue jorrar nas periferias dos grandes centros.

Como afirmou o articulista Thiago Amparo, na edição de hoje do jornal Folha de S. Paulo, “a regra no país sempre é que a polícia executa, o governador aplaude e o Judiciário se cala”.

No Rio de Janeiro, nessa quarta-feira 2, no Complexo da Penha, Zona Norte da cidade, 10 pessoas foram executadas com os mesmos requintes de crueldade, mas o número pode aumentar: há quatro feridos em estado grave. Bandido bom é bandido morto, não importa se na operação morram inocentes, trabalhadores, donas de casa. “Efeito colateral”, diz o governador. É a história que se repete, não como farsa, como professava Marx, mas como reedição fria e sórdida de uma prática que, na contramão do que pretende (pretende?), só contribui para o agravamento do problema da violência no país.

Amante da literatura, recuo no tempo e cito de cor fragmentos do poema da escritora americana Elizabeth Bishop, intitulado “Cadela Rosada” (1979): “Você não sabia? Deu no jornal:/para resolver o problema social,/estão jogando os mendigos no canal.”

Bishop faz alusão à prática de um grupo de justiceiros de direita, com o suposto apoio do governador do então estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-1965), que negava categoricamente seu envolvimento com o caso.

O texto segue: “Se fazem isso com gente, os estúpidos,/com os pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,/o que não fariam com um quadrúpede?” E, mais adiante: “A piada mais contada hoje em dia/é que os mendigos, em vez de comida,/andam comprando boias salva-vidas.”

Com o olhar atento ao que ocorria na cidade durante os vinte anos que morou no Brasil, Bishop tinha do problema da violência uma compreensão profunda. Em outro poema, “Apartamento do Leme”, a poeta diz: “Está ficando mais claro. Na praia dois homens/se levantam de sepulturas rasas forradas com jornal./Um terceiro continua dormindo. Sua colcha//é papel amassado, uma caixa achatada./Um cão a correr, dois banhistas madrugadores, param/subitamente meia-volta”.

A estrofe é antológica, quase fotográfica, para evidenciar a omissão de uma elite indiferente à miséria, uma vez que os banhistas se afastam para evitar a presença dos moradores de rua.

Mas, já que trouxe Bishop de volta, nada que se compare ao magistral “O Ladrão da Babilônia”, em que registra poeticamente o assassinato de um delinquente conhecido por Micuçu, a cuja perseguição por homens do Exército (sim, do Exército) a escritora acompanha de binóculo da sacada do apartamento em que mora com a arquiteta Lota de Macedo Soares: “Nos morros verdes do Rio/Há uma mancha a se espalhar:/São os pobres que vêm pro Rio/e não têm como voltar”.

O poema termina sob o ponto de vista do delinquente, cujos olhos se fixam na paisagem da Zona Sul, com seus prédios luxuosos e sua natureza exuberante. Ele tenta escapar, mas um soldado desfere o tiro mortal: “Ouviu um bebê chorando/E sua vista escureceu./Um vira-lata latiu./Então Micuçu morreu”.

Estudos evidenciam que as chacinas acontecem sempre a mando de homens brancos e poderosos, e suas vítimas são quase invariavelmente moradores de favelas, em que a maioria é composta por pobres e negros.

Num país desigual e acintosamente injusto, a pretexto de proteger a sociedade contra bandidos, autoridades, como o governador Tarcísio de Freitas, festejam chacinas, execuções perversas e indiscriminadas.

Enquanto não se cumprem os direitos fundamentais, uma educação de qualidade, a tolerância como forma de convivência pacífica com as diferenças sociais e étnicas, resta-nos a literatura para revelar um pouco de nossa indignação.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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