O crítico literário, poeta e cronista paraibano Hildeberto Barbosa Filho, no seu belíssimo “Da volúpia do erro”, revela ter hesitado em tornar pública a sua lista de melhores livros de 2023. Vai além, amparando-se na sua fina compreensão do que existe de subjetivo nelas, a propósito do que leva a efeito, como lhe é próprio ao lidar com o objeto artístico, uma consistente reflexão em torno de suas peculiaridades: “A vida, como aquele esplêndido poema almejado por Valéry, nada mais é que a estranha hesitação entre o som e o sentido. […] Para mim é simplesmente impossível enumerar meus títulos e meus autores.” E desfecha, certeiro: … ler é viver dentro do mistério e do milagre das coisas”.
Esta, a razão por que, dizendo-se afeito às listas, desaconselha fazê-lo em relação aos livros. Com efeito, é sempre arriscado fazer escolhas num universo tão amplo e tão complexo, a envolver gosto e subjetivações de toda ordem, influências inconscientemente sofridas, inter-relações de natureza ambiental e política etc. Do alto de sua competência intelectual e de sua invulgar sensibilidade para tratar com a palavra e, de modo especial, com a linguagem artística que a toma como matéria-prima, Barbosa, como bom horaciano, ensina e deleita com seus textos a um só tempo prenhes de conhecimento e domínio técnico da matéria, mas sobretudo carregados de aguçado sentimento estético. De beleza, diga-se, em estado mais puro e pleno.
De outro lado, e em direção contrária, não menos dotado do mesmo talento e da mesma singular capacidade de fazer da palavra um envolvente e belo brinquedo (e instrumento de luta), acena-me o ficcionista e poeta de Licânia, um certo Clauder Arcanjo, a quem cearenses e norte-rio-grandenses, nordestinos e brasileiros em escala mais ampla, devemos exemplos incontestes da melhor literatura: “Mestre Alder (é assim que me trata), cadê sua lista dos melhores livros de 2023?” Diz isso entre um gole e outro de café, enquanto desfrutamos, na companhia do sempre elegante Galileu Viana, dos aprazíveis espaços da Livraria Cultura, no Rio Mar, pondo em dia descobertas e deslumbres da alta literatura do Brasil e do mundo.
Pobre mortal, assim meio que sem lugar para colocar as mãos, vejo-me eu entre a cruz e a espada, na obrigação de me definir pelo silêncio e pela lúcida omissão, à maneira de Hildeberto Barbosa Filho, professoral e intenso, ou pela revelação dos livros que li e recomendo, como provoca, gentil e matreiro, Clauder Arcanjo.
Leitor compulsivo, desses que gostam de dar vazão às suas inquietações literárias, “como se ler tivesse (e tem) o peso da respiração”, nas palavras do próprio poeta da Paraíba, opto por atender ao que me pede Arcanjo, a quem observo ir além da mera avaliação das qualidades de forma e conteúdo dos livros recomendados, em favor do que, nesses livros, arrebatou-me pela força estética em termos rigorosamente humanos. Digo melhor: o que me proporcionaram de mais profundo e mais tocante como lição de vida, como exercício de sabedoria que, em alguma medida, tenham me feito melhorar como homem ao final da leitura. Vou a dois deles.
“O que é meu”, de José Henrique Bortoluci. Ensaio biográfico, sensível e emocionante, com que o autor, em sua estreia como escritor, traça um perfil profundamente humano da figura paterna, um homem simples, motorista de caminhão, na difícil luta contra um câncer incontrolável. A partir de uma série de entrevistas com o pai, Bortoluci, como se tirando leite de pedra, realiza uma leitura de rara amplitude sobre a realidade do país.
“É a Ales”, de Jon Fosse. Romance calcado numa experiência surreal da personagem Signe. Deitada em um banco, ela vê a si mesma diante de uma janela, voltada para o Fiorde em que seu marido fora a passeio para nunca mais voltar. Numa prosa desconcertante, com perfumes joyceanos, Fosse narra a hipnótica e alucinante angústia da personagem diante do que existe de mais doloroso na experiência da perda, do sofrimento humano elevado a dimensões desconhecidas. Publicado em 2004, mas só ano passado traduzido para o português, é obra aclamada na Europa, e seu autor ganhador do Nobel de Literatura em 2023. Um livro que traz para o leitor uma intensa lição de vida, de humanidade e de amor ao outro. Obra-prima, mas desafiadora para os não familiarizados com um tipo de narrativa desobediente aos preceitos normativos da língua, mesmo em sua tradução para o português.
Por limitação de espaço, volto sobre o assunto em colunas futuras.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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