Há muito resta evidente que toda atividade intelectual pressupõe uma dose considerável de subjetivação, mesmo aquelas que recebem o rótulo de acadêmicas e se pretendem, por isso mesmo, isentas de influências de natureza pessoal, a exemplo de gostos, preferências estéticas, dos humores do tempo e das circunstâncias históricas.
Exemplo clássico do que vai dito pode-se perceber no projeto “200 anos, 200 livros”, que o jornal Folha de S. Paulo, em parceria com o Projeto República (UFMG) e a Associação Portugal Brasil 200 anos, levou a efeito, a partir da escolha de 169 intelectuais, com a finalidade de relacionar os 200 livros mais importantes para entender o Brasil.
A relação, portanto, toma por base indicações enviadas ao jornal por historiadores, sociólogos, antropólogos, escritores, economistas, juristas e outros profissionais ligados ao mundo acadêmico, bem como de representantes, também eles intelectuais, de Portugal, Angola e Moçambique.
O resultado, divulgado neste 5 de maio, dia consagrado à Língua Portuguesa, é naturalmente polêmico, em que pese figurar entre os duzentos livros escolhidos alguns títulos recorrentes em escolhas do gênero. É o caso de Grande Sertão, Veredas (1956), de Guimarães Rosa, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, há muito considerados verdadeiras unanimidades entre estudiosos e leitores mais exigentes do país.
Onde a razão de se falar em polêmica, então?
Supostamente no fato de Quarto de Despejo (1960), de Carolina de Jesus, não só encabeçar a lista, mas de ter aparecido na quase totalidade das listas dos intelectuais ouvidos.
Na sequência, por ordem de classificação, vêm o clássico de Guimarães Rosa, apontado acima, e A Queda do Céu (2015), de Davi Kopenawa e Bruce Albert, com o mesmo número de indicações.
Entre os mais bem colocados, o que não constitui novidade, claro, aparecem obras obrigatórias para a compreensão do processo de formação do que se pode entender como a identidade nacional, na linha dos muito cultuados Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, 4º lugar, e Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, 5º lugar. Entre esses, ainda figuram Brasil: Uma Biografia, de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, 10º lugar, e Viva o Povo Brasileiro (1984), 15º lugar, de João Ubaldo Ribeiro.
Mas é mesmo Quarto de Despejo, diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus (1014-1977), que se reafirma como um dos mais viscerais, sanguíneos e dignos depoimentos sobre nossas contradições, nossas mais fundas misérias, nosso racismo estrutural e nossa pobreza desumana.
Decorridos 62 anos desde a sua primeira edição, o livro de Carolina de Jesus alcança, em definitivo e de forma consagradora, o reconhecimento intelectual de um clássico incontornável sobre o Brasil, não apenas pelas qualidades do registro literário propriamente dito, feito na contramão das convenções da língua padrão, e, por isso mesmo, incorretamente julgado à época de sua publicação como um texto mal escrito, mas pelo que revela do ato de escrever como uma experiência de linguagem, um ato de invenção e descoberta, palmilhando veredas linguísticas, reinventando estruturas narrativas e forças lexicais, num processo de criação que transcende a função referencial da linguagem para atingir o estatuto de arte, de sedutora poesia, a fim de denunciar o lado torto do homem e da sociedade brasileira do passado e do presente.
Eis a razão por que, quando se celebram os 200 anos da Independência do Brasil, segundo os 169 intelectuais ouvidos, Quarto de Despejo ocupa o primeiríssimo lugar entre os duzentos maiores livros para entender o país.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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