Ao completar cem dias de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem demonstrado uma percepção dos problemas do País que me parece representar avanços se comparada à visão dominante nos governos anteriores: a começar pela composição do atual ministério, em que pese a existência, nele, de contradições advindas da necessidade de honrar compromissos em face do que se tenta ressaltar, precariamente, como uma “frente ampla”, o presidente tem buscado encarar seus imensos desafios numa perspectiva algo próxima do que se define modernamente como “interseccionalidade”.
O termo, nascido das incontornáveis contribuições da estudiosa norte-americana Angela Davis*, é utilizado para definir a dinâmica da exclusão capitalista a partir de outros referenciais que não os da esquerda dita tradicional, baseados historicamente na busca de alternativas ortodoxas que tomam como ponto de partida a questão de classe em detrimento de outras questões com ela relacionadas.
Não à toa, mesmo sendo entusiasta do marxismo, que leva à raiz em suas reflexões acadêmicas e em sua ação como militante negra e feminista, Angela Davis defende que nenhuma luta por uma sociedade mais justa e igualitária pode prescindir do que considera um nexo prioritário entre o racismo e o sexismo, por exemplo, numa visada que, para ela, vai além do mero enfrentamento das relações de classe da sociedade burguesa, identificada com o espectro ideológico da extrema direita.
É esse deslocamento do olhar sobre a desigualdade e a exclusão capitalista, portanto, que traz o governo atual do PT para um eixo menos ortodoxo e mais condizente com a realidade do País hoje, o que, insisto, pode-se ver com clareza num ministério em que pontuam como novidades concretas os nomes de Anielle Franco, Margareth Menezes e Silvio Almeida, cujos projetos, mesmo em diferentes pastas, mostram-se rigorosamente sintonizados em relação às questões de gênero, de raça e de classe, o que representa essa perspectiva de interseccionalidade professada pela filósofa estadunidense.
Não é preciso ir longe, assim, para se identificar nessa compreensão da realidade as razões por que se tenta afirmar o que me parece uma obviedade: o governo Lula 3 insinua-se mais à esquerda que os dois anteriores, mesmo quando essa postura suscita incompreensões dentro do próprio PT, como sempre, voltado para a questão social tradicional, de classe propriamente dita.
É aqui que entram as contribuições decisivas de Angela Davis, uma vez que a práxis adotada pelos movimentos populares brasileiros hoje se tem mostrado mais atenta à maneira sob a qual essas questões se entrecruzam num contexto de exclusão, desigualdade, pobreza e violência contra indígenas, mulheres e negros.
Não se trata, por óbvio, de negar o referencial de classe, mas de não fechar olhos para as questões racial e de gênero a ela relacionadas, bem como a seus cruzamentos e intersecções.
Nesse sentido, mesmo diante de antagonismos bestiais e imensos desafios de natureza política e econômica, ainda que informalmente, o presidente e sua equipe chegam aos cem dias de governo apresentando ao País um projeto em sua essência corajoso, inovador e com amplas possibilidades de vitória, mesmo tendo pela frente um Congresso afeito a práticas e interesses em nada republicanos.
É esperar e torcer.
*Filósofa, ativista, marxista, Angela Davis integrou o movimento Panteras Negras e o Partido Comunista dos Estados Unidos. Foi presa nos anos 1970 e ensejou a campanha “Libertem Angela Davis”, pelo qual se tornou mundialmente conhecida. É autora de mais de sessenta livros sobre política, cultura e interseccionalidade no combate às assimetrias sociais, entre os quais se destacam “Angela Davis, Autobiografia”, “Mulheres, Cultura e Política” e “Mulheres, Raça e Classe”, publicados no Brasil pela Editora Boitempo.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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