Lula, biografia. O livro de Fernando Morais

18/12/2021

Na sequência de leituras comentadas aqui nas últimas semanas, reporto-me hoje a mais uma biografia, a do ex-presidente Lula (Companhia das Letras, 2021), assinada pelo jornalista e escritor Fernando Morais. Trabalho elegante deste pesquisador incansável a quem se deve parte significativa do que se fez no país no gênero, nos últimos anos, a exemplo de Olga (1985) Chatô (1994) e Corações sujos (2000), em que reconstitui o que houve de mais sangrento na história da imigração japonesa, o volume 1 (o segundo está previsto para o próximo ano) do livro de Fernando Morais é mais que uma simples biografia do ex-presidente: o livro esmiúça o que estava por trás das armações das ações da Lava Jato e da condenação que levou Lula a cumprir 580 dias de prisão em Curitiba.

Esta a razão por que a narrativa, extremamente sedutora, tem início com os fatos ocorridos no interior do Instituto Lula tão logo se tornou conhecida a decisão judicial com que o ex-juiz Sergio Moro determinava a prisão do ex-presidente. O relato ganha ritmo eletrizante e o leitor é introduzido nos bastidores de acontecimentos de cuja repercussão se sabia muito pouco até aqui. O clima pesado, os elementos dramáticos que antecedem a decisão de Lula não se entregar, a presença surpreendente de políticos estranhos ao PT, o ex-governador Cid Gomes, por exemplo, que fora propor à ex-presidente Dilma Rousseff candidatar-se ao senado pelo Ceará; declarações dadas ao sabor do que era um tipo de pesadelo para todos, ali, já se fazem perceber na forma como Morais intitula cada capítulo do livro ao lançar mão de um tipo de “lead” que serve de guia para o que o texto traz de mais relevante: “Com a prisão decretada por Moro, Lula decide não se entregar à Polícia Federal: – Eles que venham me prender.”

O texto, no entanto, entremeia fatos de forma aleatória, o que requer uma leitura mais atenta, sob pena de se confundirem fatos que aparecem indiretamente em diferentes capítulos. À riqueza de informações, no entanto, com a habilidade de um mestre no gênero, o biógrafo vai misturar sutis intervenções pessoais ou mesmo incontida indignação, como a tornar transparente seu ponto de vista e sua já conhecida posição política. É o que ocorre quando, ao tornar evidentes os métodos nada republicanos de Moro a fim de condenar o ex-presidente, emite sem meias-palavras o que pensa sobre a delação premiada utilizada pela Operação Lava Jato de forma criminosa: “Com base na legislação criada originalmente para facilitar a elucidação de crimes hediondos, como sequestro e estupro, a chamada ‘colaboração premiada’ permitiu que a Operação Lava Jato construísse uma monstruosidade adicional: a banalização da delação.”

Vai além, trazendo à memória do leitor o que foi um parâmetro de honradez observado pelos mais velhos: “Ao longo da vida, gerações aprendem que ninguém é mais sórdido e infame que o alcaguete, o dedo-duro, o cachorrinho, o delator, algo que só caberia num tratado geral de canalhice”.

Sob este aspecto, é notável que torne explícito tratar-se de um expediente próprio dos regimes totalitários e das ditaduras militares, na linha do que se fez à larga no Brasil: “ou o preso revela o que as autoridades querem ouvir, ou paga por isso. Na ditadura, podia pagar até com a vida. Na Lava Jato, com a ameaça de permanecer preso por tempo indeterminado”. Essa a razão, lembra ele, por que o instrumento se tornaria conhecido pelos próprios integrantes da Operação, num ato falho de assumida desfaçatez, como “pau de arara de veludo”, numa referência a um dos meios de tortura mais perversos adotados pelos militares brasileiros.

A narrativa (não se dê à palavra o sentido com que a utilizam os políticos hoje), mantém-se num ritmo intenso, jamais perdendo, contudo, o sabor do texto extremamente bem escrito de Fernando Morais, mesmo quando se refere às manobras do STF no objetivo de tornar célere a condenação do ex-presidente ao negar-lhe, à 00h48 da madrugada, o habeas corpus por 6 votos a 5, consumando uma articulação mal disfarçada entre as três instâncias judiciais.

Mas nada se compara, em sensibilidade jornalística e arte do escrever, à passagem em que relata uma das mais sórdidas atitudes de um ministro do Supremo jamais vista: o desavergonhado, perverso, indecoroso, desumano, e outros adjetivos mais, despacho do ministro Dias Toffoli, então presidente do STF, a fim de tornar possível a Lula despedir-se do irmão Vavá, morto em decorrência de um câncer. Digno de uma obra do realismo fantástico, como observa Morais, Toffoli “propunha uma inversão dos funerais conhecidos em qualquer cultura ou religião: em vez de receber no velório a visita do irmão, o defunto seria transportado para um quartel” em que Lula o aguardasse. O ex-presidente a recusaria, como a calar com seu sofrimento a voz do inescrupuloso algoz.

O livro volta no tempo, perfaz a trajetória do menino pobre nascido no Nordeste, relata como se deu seu crescimento em meio a adversidades de toda ordem, o surgimento do líder sindical, os memoráveis eventos do estádio de Vila Euclides na greve de 1979, a fundação do Partido dos Trabalhadores, sua eleição como deputado federal até então mais bem votado, as campanhas para presidente, o prestígio internacional e as transformações que impôs à história política do país. Reacende o que houve de mais cruel por parte da Justiça quando da morte do neto Arthur; a perda da mulher, dona Marisa; a inteligência incomum, o tino, a fina percepção dos fatos e a consistência das ideias… A história de um candidato quase imbatível, a compreensão iluminada dos valores humanos, o homem público que renasce das cinzas para reescrever a história.

Sem esquecer as impensáveis curiosidades que envolvem a figura de um ser diferenciado.

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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