Há algum tempo escrevi neste espaço sobre o romance inacabado “O Primeiro Homem”, de Albert Camus. Os manuscritos do livro haviam sido encontrados numa pasta de couro conduzida pelo escritor francês quando do acidente de carro que o matou em inícios dos anos sessenta. Um relato em que se misturam, em linguagem elegante e escorreita, ficção e memória, mais memória que ficção.
Camus, depois de adulto, cumprindo uma promessa feita à mãe, viaja à Argélia em busca de suas raízes familiares e da presença em sua vida do pai com quem jamais convivera. A passagem da narrativa em que descreve sua visita ao túmulo do pai, em cuja lápide pode ler seu nome e a data de falecimento, é algo inesquecível, pela beleza da descrição e relato da profunda emoção que invade seu coração, em que pese a serenidade com que, mentalmente, faz as contas a fim de concluir com que idade falecera: “… 29 anos. O homem que ali estava, e que fora meu pai, poderia ser meu filho” (cito de cor).
O livro de Camus me veio à mente ontem ao assistir ao belo documentário “Marinheiro das Montanhas”, do cineasta Karim Ainöuz, filmado em 2021 e só agora disponibilizado ao público brasileiro pela Globonews.
Trata-se de um filme extremamente bem cuidado do ponto de vista estético, em que pese a forma aparentemente desleixada como Ainöuz trabalha os elementos narrativos da obra – câmera na mão, não raro manuseada com certo nervosismo nas escolhas de ângulos e enquadramentos, no uso da luz e, notadamente, na voz over do próprio realizador, aqui e além trêmula e aparentemente insegura. As falas são improvisadas, pautadas por um ritmo irregular e invariavelmente informal, como se o narrador estivesse se dirigindo a sua mãe, Iracema, morta há bastante tempo.
A técnica narrativa é a mesma de “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te amo” (2009), em que um homem em viagem pelo Nordeste lê uma carta dirigida à sua amada. É quase isso que se pode ver em “Marinheiro das Montanhas”, com a diferença de que agora esse homem é o próprio Karim Ainöuz, que viaja à Argélia para conhecer, a exemplo de Camus, a terra de seu pai, com quem não pôde conviver: Majid, o pai de Ainöuz, conheceu Iracema à época em que esta morava nos Estados Unidos para realizar estudos de pós-graduação em biologia. O relacionamento foi passageiro, inconstante, febril, mas foi dele que nasceu o cineasta cearense.
É curiosa a forma como o diretor (e operador de câmera) conduz o filme numa experiência de filmagem que aproxima o processo do conteúdo, expressando o pulsar da emoção no ritmo da narrativa, os tremores da imagem à intenção da ideia, a instabilidade do mar, dentro do navio que transporta o narrador do filme, às inquietações do pensamento. Sob este aspecto, registre-se o fato bem-sucedido de Karim Ainöuz tornar explícitas suas posições políticas diante da realidade difícil e pungente do país pós-golpe de 1964, mesma época em que Argel, a capital argelina, era palco das lutas sangrentas pela independência do país, então colônia francesa.
É quando o filme ganha em poesia, a voz de Karim, dirigindo-se à mãe, interlocutora imaginária, na tentativa de saber o que representou para ela a separação, a ausência do companheiro que amaria pelo resto da vida. São perguntas jamais feitas à Iracema pessoalmente, e para as quais o menino “proustiano” busca as respostas que jamais virão.
Aqui e além, em fotos ou filmes domésticos mal preservados, o espectador depara com momentos de felicidade do casal. À dada altura, o encontro de pai e filho, quando Majid mora em Paris, onde casou outra vez e teve cinco filhos. Majid é apenas um homem, como qualquer outro.
As sequências filmadas nas montanhas da Cabília, onde Karim encontra familiares e vive com eles experiências as mais curiosas, é momento alto do documentário. As excentricidades dos parentes, a cultura local, a humildade do ambiente, a cordialidade das pessoas para com Ainöuz, em meio ao cenário exótico da região montanhosa, é algo que não se pode dizer com palavras.
É preciso assistir ao filme para compreendê-lo em sua intensidade poética – e desfrutar de sua beleza plástica exuberante. Um filme belo, sensível, tocante. Recomendo.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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